Na noite de 25 para 26 de novembro de 1967, a Grande Lisboa conheceu as maiores cheias alguma vez sofridas na zona. Vivia-se em ditadura e, na época, a real dimensão da tragédia não foi conhecida do público. Os jornais queriam informar da forma mais rigorosa possível, mas a censura não deixava – muitos foram, por exemplo, os artigos em que se falava das vítimas mortais, um número que era depois diminuído pelo lápis azul.
Os registos oficiais dão conta de que 462 pessoas morreram. Alguns especialistas, porém, apontam cálculos mais elevados e defendem que perto de 700 vítimas terão perdido a vida entre Lisboa, Cascais, Oeiras, Odivelas, Loures, Vila Franca de Xira, Alverca, Alhandra e Alenquer. É que, nessa noite, os valores máximos registados dão conta de terem chovido 170 litros por metro quadrado.
É certo que nessa noite choveu muito, mas é também verdade que, na época, o planeamento urbano era outro. Especialmente na periferia lisboeta, não faltavam bairros de lata – localizados em leitos de cheia – onde viviam inúmeras famílias em casas clandestinas. E foi este o principal motivo para haver tantas vítimas mortais.
Passados 50 anos desde as ‘grandes cheias’ e com o agravar das alterações climáticas torna-se inadiável a reflexão sobre o tema. Mas uma questão coloca-se imediatamente: será possível uma catástrofe semelhante ocorrer nos dias de hoje?
Lisboa já teve precipitações mais intensas do que a de 67
As cheias são, já desde 2014, uma preocupação de várias entidades, materializada no projeto Cartas de Inundações e de Risco em Cenários de Alterações Climáticas (CIRAC), nascido de uma colaboração entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa através do grupo de investigação Impactos, Adaptação e Modelação em Alterações Climáticas (CCIAM).
O projeto identifica as regiões do país mais vulneráveis a cheias e faz também uma cartografia de risco detalhada para zonas específicas, como Lisboa ou Algés. Pedro Garrett, investigador do Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, foi o coordenador do projeto e lembra ao SOL que o fenómeno de 1967 «foi muito particular, principalmente pelo número de vítimas que causou, que é completamente anormal».
O investigador recorda também o contexto, igualmente particular, da época. «Havia um acentuado desordenamento do território na altura – com uma ocupação muito forte de zonas de elevado risco, de bacias de leitos de cheia de ribeiras, de rios – que realmente foi o responsável por este número de vítimas na altura». E é, para Garrett, uma circunstância irrepetível, pelo menos no que diz respeito ao número de vítimas mortais.
«Se estivermos a falar em termos de intensidade e frequência de precipitação que deu origem a este fenómeno, sim, pode voltar a acontecer. Se estivermos a falar do número de vítimas não, não pode voltar a acontecer. Porque em muitos destes leitos de cheia, neste momento são zonas que ou de alguma forma foram canalizadas, ou as ribeiras foram canalizadas, ou a pressão urbanística foi diminuída consideravelmente e foi feita uma coisa interessante: deu-se espaço à água, e isto é importante na gestão da água principalmente em meio urbano, é preciso dar também espaço à água e este espaço faz com que seja muito difícil, para não dizer praticamente impossível, que haja este número de vítimas em eventos semelhantes de precipitação».
O investigador nota que, entretanto, «Lisboa já teve precipitações mais intensas do que aquela que ocorreu em 1967». Até porque, afirma, as alterações climáticas tendem a acentuar os fenómenos meteorológicos. «A atmosfera está mais quente. Ao estar mais quente, também existe mais a evaporação, o que faz com que a atmosfera também fique mais húmida. E então, quando há sistemas depressionários – sistemas que a proveito de massas de ar quente, vão fazendo com que as águas dos oceanos evaporem e vão acumulando muita humidade – e encontram uma massa de ar frio, direcionam-se mais para os continentes e forma-se uma precipitação muito intensa e muito localizada, um fenómeno que pode gerar cheias rápidas típicas em ambiente urbano, e a quantidade de chuva que cai em poucas horas é enorme», explica. O investigador não tem dúvidas – este fenómeno tem tendência a aumentar, apesar de os países estarem hoje melhor preparados e conseguirem reduzir e prevenir estragos.
O especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos pensa da mesma forma. «É muito pouco provável. Embora as alterações climáticas tragam eventos extremos de precipitação – muita chuva em intervalos de tempo curtos –, o ordenamento do território, apesar de estar longe de ser perfeito, não tem tantas falhas como tinha em 1967», defende.
Entretanto, este ano, a Direção Regional do Ambiente, a Associação Portuguesa de Seguradoras e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa celebraram um protocolo que visa a partilha de informação, uma vez que estas entidades trabalham com as mesmas problemáticas, como cheias ou falta de água. O acordo é, segundo Garrett, «bastante inovador, não só em termos nacionais como internacionais» e pode resultar numa melhor prevenção e planeamento.
Uma solução para Lisboa
Os habitantes de Lisboa já não estranham que, à mínima chuvada, alguns pontos da cidade fiquem imediatamente inundados, os bombeiros sejam chamados para inúmeras ocorrências e a cidade se encha de sirenes. Exatamente para prevenir essas situações – que segundo os especialistas deverão vir a agravar-se no futuro devido às alterações climáticas –, a Câmara Municipal de Lisboa projetou o Plano Geral de Drenagem de Lisboa.
O sistema envolve a construção de dois túneis – um entre Santa Apolónia e Monsanto, com 5,5 quilómetros, e o outro entre Chelas e o Beato, com 1,5 quilómetros – e traduz-se num investimento de 85 milhões de euros. O objetivo? Escoar a água proveniente de chuvas fortes para o rio Tejo, evitando assim inundações.
A previsão é que, nos próximos 100 anos, os túneis consigam evitar 20 inundações intensas. A obra tem uma duração prevista de quatro anos e causaria constrangimentos no trânsito da cidade em várias zonas – Campolide, Avenida da Liberdade, Avenida Almirante Reis, Santa Apolónia, Chelas e Beato.
A Câmara Municipal de Lisboa não revelou se estas construções arrancam finalmente, como previsto, em 2018.
À Agência Portuguesa de Ambiente (APA) coube fazer um estudo do impacto ambiental da obra, com as vantagens e desvantagens da construção. E se a cidade vai ter mais pó, trânsito e confusão, o estudo assinala também que o sistema atualmente em funcionamento tem já 50 anos e cada vez menos capacidade e eficácia em fazer a drenagem do excesso de água resultante da precipitação.
Questionado sobre a eficácia da solução traçada para a cidade, Pedro Garrett lembra que «é uma obra grande e cara», afirmando que há pequenas coisas que se podem fazer na cidade para minorar as cheias, mais no imediato.
«Devemos ao máximo potenciar a infiltração de água no solo. E isso faz-se, por exemplo, não impermeabilizando os logradouros, construindo jardins e usando tipos de piso nos parques de estacionamento a céu aberto que potenciem a permeabilidade do solo», diz o investigador.
Filipe Duarte Soares olha para o projeto da Câmara Municipal de Lisboa como «uma iniciativa muito positiva, que vai certamente diminuir o risco de inundações na cidade».
Contudo, o especialista assinala a importância de as obras planeadas terem de ter em conta o aumento da temperatura e a subida do nível médio do mar, apesar de não haver certeza quanto aos valores. «Prevê-se que para lá de 2100 a subida seja superior a um metro. Portanto, apesar de estas obras serem úteis, têm um período de validade, uma vez que não sabemos exatamente como vão evoluir as alterações climáticas», afirma.