O processo em que o ex-vice-Presidente de Angola é acusado de corromper um procurador português tem contornos complexos, tendo seguido inclusivamente para julgamento sem que Manuel Vicente fosse intimado e constituído arguido. Mas nos últimos tempos têm sido as revelações advogado do Estado angolano e também arguido na Operação Fizz a causar surpresa.
Paulo Blanco – que além do Estado angolano também já defendeu Manuel Vicente – sugeriu que o Ministério Público (MP) não quis chegar aos verdadeiros beneficiários da alegada corrupção neste caso, apontando o dedo a Carlos Silva, vice-presidente do BCP e presidente do BPA, e ao advogado Proença de Carvalho. O conhecido advogado também reagiu, negando qualquer influência na Justiça.
O SOL teve acesso ao processo 208/13.9 TELSB, indicado por Paulo Blanco como tendo sido benéfico para os interesses do banqueiro Carlos Silva e em que Proença era o advogado. Caso a versão de Blanco seja tida em conta pela Justiça, este outro arquivamento poderá vir a complicar ainda mais um caso que hoje já deixou marcas nas relações entre Portugal e Angola e que até já levou o primeiro-ministro português a pedir um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a imunidade de Manuel Vicente e a sua validade ou invalidade em Portugal – documento que o SOL confirmou ter sido ontem enviado para o primeiro-ministro e cujas conclusões deverão ser tornadas públicas muito em breve.
Sobre este inquérito que visava Carlos Silva, o advogado Paulo Blanco afirma na sua contestação, noticiada pelo SOL há 15 dias, que o arquivamento, para o qual terá sido essencial a intervenção de Orlando Figueira, acabou por ter um resultado de enorme importância, «por razões que o MP nunca percebeu como resulta da acusação».
«O Dr. Orlando Figueira [colaborava] com o Dr. Daniel Proença de Carvalho, tendo sido ele quem combinou com o Procurador da República, Paulo Gonçalves, a inquirição do Dr. Carlos Silva no âmbito do referido inquérito nº 208/13.9 TELSB que, por via do instituto da separação de processos, veio a dar origem ao processo n.º 356/14.8TELSB», referia-se na contestação.
O início do processo 208/13.9
Em janeiro de 2012, o jornalista e ativista político angolano Rafael Marques esteve no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Lisboa, a prestar um depoimento sobre situações envolvendo personalidades de Luanda que poderiam configurar crimes de natureza económica. Rafael Marques começou por explicar que já tinha apresentado uma queixa na PGR de Angola contra Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, Leopoldino Fragoso do Nascimento e Manuel Vicente. No centro de tudo estaria a sociedade Grupo Aquattro Internacional que detinha 40 empresas de direito angolano e que tinham sido criadas por um português – Isménio Macedo – que era administrador do Banco Privado Atlântico.
Segundo referido na altura, o banco (de que a Sonangol era à data a principal acionista) concederia empréstimos e faria parcerias com as diversas empresas. Rafael Marques argumentava ainda que «o Banco Privado do Atlântico tem delegações em Portugal, cujo objetivo é base para facilitar o branqueamento de capitais destas 40 empresas e outra envolvendo dirigentes angolanos».
E concluía que as empresas tinham o propósito de «fazer com que quaisquer outras empresas internacionais que [quisessem] investir em Angola [tivessem] que o fazer através daquelas ou de outras da família presidencial e de mais figuras cimeiras do regime». E referia ainda o peso que as mesmas iam ganhando na imprensa e na banca portuguesa: «Apesar deste controlo exercido sobre a banca portuguesa, o BPA assume o principal papel no branqueamento de capitais, uma vez que há o receio de que através dos outros bancos possa haver denuncias ou dificuldades». Apresentava, por outro lado, o BES Angola como o banco que era usado normalmente as grandes operações de branqueamento.
A abertura do inquérito
É já em outubro que a averiguação preventiva que tinha sido aberta dá lugar a um inquérito, ou seja a uma investigação. «Apesar do caráter ainda muito genérico da matéria obtida em averiguação preventiva, é essencial não deixar de fazer o levantamento necessário de informação bancária e audições pertinentes, em ordem a não ignorar as denúncias feitas que têm sempre grande impacto na opinião pública e podem gerar, se nada for feito, a ideia de impunidade ou falta de empenho da justiça portuguesa quando os denunciados são pessoas politicamente expostos de Angola ou Portugal», referia-se na abertura do inquérito.
O documento assinado pelo procurador Paulo Gonçalves é claro: «As suspeitas participadas saem também reforçadas quando se referem ao banco BESA e ao seu presidente Álvaro Sobrinho, pessoa já referenciada neste departamento» e «por outro lado Rafael Marques refere-se a um banco instalado em Portugal, o Banco Privado do Atlântico Europa, como estando envolvido no branqueamento de capitais [sendo mencionados] os nomes de Isménio Coelho Macedo, administrador do BPA-Europa e Carlos José Silva, presidente do grupo».
Uma vez que Álvaro Sobrinho já estava a ser investigado em Portugal, o procurador do DCIAP conclui que «[urgia] analisar movimentos de capitais suspeitos nas contas em Portugal de Isménio Coelho Macedo, André Navarro, Carlos José da Silva e Manuel Helder Vieira Dias Júnior». Em causa, considerava, estavam suspeitas de associação criminosa e branqueamento de capitais que justificavam o levantamento do sigilo bancário e fiscal e o pedido de informações à PGR de Angola sobre processos crimes a envolver diversas personalidades angolanas.
Em dezembro de 2012, Rafael Marques voltou a ser inquirido no DCIAP, tendo referido que os valores movimentados pelas pessoas nas operações suspeitas que havia indicado se situavam regra geral acima dos 250 mil dólares.
A inquirição de que Blanco fala
É em abril de 2013 que Carlos Silva chega ao DCIAP para ser inquirido no âmbito deste processo, uma diligência que o advogado Paulo Blanco diz no âmbito da Operação Fizz ter tido a intervenção de Orlando Figueira e o acompanhamento de Proença de Carvalho. Segundo documentação consultada pelo SOL, Carlos Silva deixou claro que pretendia ser acompanhado pelo seu advogado, Proença de Carvalho.
No auto de inquirição, explica-se que se investiga «a eventual existência de situações de branqueamento de capitais» e que, por isso, se «procedeu à inventariação das importâncias provenientes do estrangeiro, iguais ou superiores a USD 100.000,00, que deram entrada nas contas» de Carlos Silva, que, além de contas no BCP, «é ainda titular único ou cotitular de mais 24 contas e se encontra autorizado a movimentar mais 9 contas, num total de 10 outros bancos portugueses».
Foi assim pedido que fossem juntos aos autos esclarecimentos sobre a origem das transferências, o objetivo e a forma como eram utilizadas todas as contas e ainda a identificação dos cotitulares. A diligência durou apenas 30 minutos e, no final, Carlos Silva disse desde há muito ter contas abertas em bancos portugueses, não conseguindo identificar no momento a origem de todas as transferência, garantindo que decorreriam certamente de atividades que tem exercido: «Através do meu advogado prestarei os esclarecimentos que se mostrarem adequados sobre as transferências efetuadas para as minhas contas do Millennium BCP».
O arquivamento
Carlos Silva juntou aos autos articulado assinado por Proença de Carvalho, procurando explicar as entradas de dinheiro em todas as contas, incluindo nas seis do BCP. Na primeira, há cinco milhões que são justificados com um crédito pedido junto de outra entidade bancária, além de outros movimentos. Na segunda, refere-se que mais de 11 milhões de dólares que entraram são provenientes da venda feita por Carlos Silva ao Millennium Angola de uma participação no BPA, uma transação de mais de 21 milhões de dólares. Nas restantes contas do BCP, são referenciadas ainda as entradas de 6,8 milhões de dólares, 7,5 milhões de dólares e 4,6 milhões de euros.
Dando como boas as alegações de Carlos Silva, um mês depois, a 15 de julho de 2014, o procurador Paulo Gonçalves decidiu arquivar o inquérito, referindo que «os completos esclarecimentos voluntariamente fornecidos por Carlos José da Silva, comprovados documentalmente com numerosos anexos inclusos, não permitem que soçobre a menor dúvida sobre a legítima proveniência dos capitais transacionados, nomeadamente atendendo aos rendimentos deste e à inexistência de notícia fundamentada sobre qualquer crime». Dois dias depois, Amadeu Guerra, diretor do DCIAP, conclui e assina: «Li o despacho. 17.7.2014».
Rafael Marques não recorreu
Rafael Marques, depois de notificado, não pediu intervenção hierárquica nem a reabertura deste inquérito, que é aquele em que assenta a versão de Paulo Blanco, quando diz que os verdadeiros beneficiários de Orlando Figueira não foram perseguidos pelo MP no âmbito da Operação Fizz – numa alusão ao facto de Carlos Silva nunca ter sido constituído arguido neste caso.
Proença de Carvalho reagiu há dias às acusações de Blanco, garantindo que tudo o que foi dito é falso e que «também é falso que alguma vez tenha recorrido ao Dr. Paulo Blanco para ‘agendamento de uma inquirição no DCIAP’ ou em qualquer outra diligência ou intervenção junto de Magistrados do Ministério Público». Sobre o facto de alegadamente Orlando Figueira ter colaborado consigo, Proença de Carvalho nega que isso alguma vez tenha acontecido.
Contactado ontem pelo SOL, Daniel Proença de Carvalho confirmou ter acompanhado Carlos Silva ao DCIAP, voltando a garantir ser falso que qualquer diligência tenha sido intermediada por Orlando Figueira: «Acompanhei o Dr. Carlos Silva que foi ouvido como testemunha. O DCIAP enviou-lhe uma notificação, depois eu fui informado que havia aquela notificação e ligamos [do escritório] para o DCIAP para marcar uma data compatível. Como acontece todos os dias com centenas de advogados».
O SOL tentou ontem sem sucesso contactar Rafael Marques.