Vanessa fez anos um dia destes.
Muitos anos.
As pessoas dividem-se entre aquelas que querem festas de arromba e as que preferem que o dia passe depressa e discretamente para poderem retomar a normalidade. A Vanessa nisto – e em tantas coisas mais – não é carne nem é peixe. Já houve aniversários em que quis tudo e mais uns pós e outros que passou numa forma esquisita de clandestinidade não muito distinta da dos comunistas antes do 25 de Abril, ainda que sem a ameaça da PIDE.
Ao longo destes anos todos – muitos – a coisa não tem sido coerente. Mas o que interessa a coerência? Nos tempos que correm vale zero. Talvez a coerência nunca tenha valido nada. Não há nenhuma razão para que nisto dos aniversários tivesse que ser a Vanessa a tê-la.
Liguei-lhe de manhã.
– Então, como vai a crise deste ano?
– Qual crise?
– Todos os aniversários têm uma crise.
– Oh, isto agora não é nada. A pior foi a dos 18.
É verdade que ninguém dá o devido valor à crise dos 18 anos. Fala-se muito na dos 30, na dos 40, na dos 50, na dos 60, nas dos 70, dos 80, dos 90. Mas muito pouco na crise dos 18.
Ora, quando eu conheci a Vanessa ela estava a atravessar a crise dos 18. E uma das minhas melhores e piores qualidades, dependendo dos assuntos em causa, é ter uma excelente memória. Lembro-me perfeitamente dessa crise que aconteceu nos longíquos anos 80.
A festa foi na Cantina Velha da Cidade Universitária. Quer dizer, nenhum de nós tinha dinheiro para comer fora da cantina e sendo a Cantina Velha um nojo absoluto – em contraponto, o arroz da Faculdade de Ciências, que na altura ficava ali ainda na rua da Escola Politécnica era bastante razoável – a Cantina Velha tinha o que se chamava na época “o espírito do lugar”. Como não havia muito dinheiro nesses anos, aprendemos a dar um valor do caraças, e até a ter imenso prazer, com o “espírito do lugar”. A Cantina Velha tinha isso.
A Vanessa queixava-se que a comida não prestava, o que era uma frase redundante e cansativa. Queixava-se depois que não sabia bem se tinha acertado no curso e que estava a pensar no ano seguinte pedir transferência para História. Mas não tinha a certeza. Só sabia que não queria pôr os pés nas aulas – de resto, mais depressa era apanhada na esplanada a beber cerveja do que nas salas de aula geladas e de tectos altos. Estava a desiludir os pais, claro. Isso também lhe dava complexos de culpa. Era gorda e não arranjava namorado. Aliás, nunca iria arranjar. (Tem piada que esta questão nunca mais se voltou a pôr à Vanessa nas crises de idade que se seguiram). Não tinha dinheiro (ninguém tinha nos anos 80, o Bloco Central, inflação, etc.). Achava que tinha que crescer mas na realidade apetecia-lhe o colo da mãe. E antevia um futuro que só poderia ser negro – aquele momento em que teria que tomar conta de si própria, arranjar trabalho, etc. Saberia ela trabalhar? Acordar cedo? Cumprir horários?
De repente começou a recitar Álvaro de Campos:
«No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/Eu era feliz e ninguém estava morto (…)/Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma/De ser inteligente para entre a família/E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim/Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças».
A Vanessa queria, na sopa da Cantina Velha, «comer o passado como pão de fome sem tempo de manteiga nos dentes». Quando ela chegou aqui, tivemos que a mandar parar.
– Vanessa, tu és feliz e ninguém está morto.
– Não sei se sou feliz. Quando eu era feliz era aos 10. Acho que foi a idade perfeita da minha vida.