Vicente Jorge Silva, o diretor-fundador do Público, está na sua ilha da Madeira. Não vai poder vir ao funeral de Belmiro de Azevedo. Se estivesse no Continente, iria. Guarda uma mágoa: “Gostava de ter podido voltar a falar com ele. Já tinha pensado que antes de Belmiro morrer, gostava de poder estar com ele. Acho que tínhamos criado uma relação que era de amizade. Houve confiança mútua. Se não tivesse havido confiança mútua, o ‘Público’ não teria avançado. Ele tinha orgulho no ‘Público’”.
Vicente afirma que até conhecer Belmiro, Balsemão “era o único empresário de comunicação social que dava confiança”. Belmiro também tinha essa dimensão: “Nesse aspeto, não nos enganámos.”
As relações entre Vicente Jorge Silva e Belmiro de Azevedo estragaram-se em 1996, sete anos depois de Vicente ter ido à Maia conversar com o super-homem da Sonae sobre a possibilidade de fazer um novo diário que fizesse uma rutura com o conservadorismo dos jornais dos anos 80.
Vicente lembra-se muito bem desse dia. Belmiro de Azevedo estava vestido com um blusão de cabedal e “mostrou-se logo convictamente interessado” na possibilidade de avançar com um novo diário. “Ele tinha lucidez, percebeu que iria dar prestígio à Sonae”, diz Vicente ao i, acreditando que nenhum outro empresário português, com aquela capacidade de investir, teria embarcado na aventura.
“Belmiro disponibilizou imensos meios. Ele chegou a meter dinheiro numa tipografia.” Vicente reconhece que todo aquele tempo mágico foi também um tempo de “ingenuidades”, tanto dos jornalistas fundadores como de Belmiro de Azevedo. “As ingenuidades que nós tínhamos, ele também as tinha”, afirma o diretor-fundador.
Vicente era, à época da primeira conversa com Belmiro de Azevedo, diretor-adjunto do “Expresso” e responsável pela revista. Primeiro, apresentou o projeto do diário a Pinto Balsemão, que o considerou inviável no mercado português. Mas Vicente viveu nessa altura das primeiras conversas com Belmiro de Azevedo momentos emotivos complexos: “Tinha grandes laços emocionais com o ‘Expresso’. Tive dificuldade de me libertar desses laços.” Não lhe estava a ser fácil “conspirar” com outros camaradas do “Expresso” para fundar o novo diário, que seria financiado pela Sonae.
Vicente admite que chegou a dizer aos companheiros de “conspiração” para avançarem, mesmo que ele decidisse ficar no “Expresso”. “Eu hesitei muito.”
E é então que Belmiro de Azevedo convoca uma reunião na Avenida da Liberdade, em Lisboa, num andar pertencente a uma das empresas da Sonae. Belmiro está acompanhado do seu estado-maior e obriga Vicente a decidir-se: “Ou você diz que sim ou não há jornal.”
Vicente disse que sim. Aliás, antes da reunião já tinha decidido que tinha de cortar o cordão umbilical com o “Expresso”, e avisou Balsemão.
O diretor-fundador lembra-se que o proprietário do jornal, que nunca interferiu na linha editorial, lhe reencaminhava às vezes cartas que recebia a protestar por notícias do jornal. Vicente recusava-se a responder a essas cartas e respondia a Belmiro: “Eu sou o diretor do jornal. Se quiserem protestar, escrevam-me a mim.” E então Belmiro, conta Vicente, respondia às cartas comunicando aos seus autores que teriam de se dirigir ao diretor do jornal.
Vicente admite que Belmiro “talvez gostasse de mandar mais no jornal do que mandava” mas, na realidade, a não interferência “foi uma regra que aceitou e respeitou”. Vicente Jorge Silva deixa de ser diretor do “Público” em julho de 1996, sete anos depois de ter começado a congeminá-lo. Belmiro insiste em contratar uns consultores para fazer um estudo sobre o jornal e que queriam alterar o “Público” à semelhança de um jornal sueco que, entretanto, já faliu. Na realidade, o trabalho dos consultores nunca foi aplicado.
Vicente Jorge Silva não teme que a morte do proprietário tenha reflexos no futuro do “Público”. “Tenho a melhor impressão de Paulo Azevedo. Tudo leva a crer que é uma pessoa excelente, muito competente, muito serena e muito consciente do papel que o ‘Público’ tem na vida portuguesa.”
Depois de abandonar a direção do jornal, Vicente Jorge Silva ainda se manteve como colunista durante anos, assinando o “Diário Público”. Saiu tempos depois, mas recentemente regressou ao jornal de que foi cabeça, coração e estômago.