Na vida longa dos U2, o peso dos convidados sempre pesou mais na balança do palco – nas bandas desafiadas a abrir as digressões, por exemplo, ou em pontuais e inesperadas aparições – do que em estúdio. “Songs of Experience” é uma exceção a essa regra. Kendrick Lamar é narrador em “Get Out Of Your Own Way” e “American Soul”, duas das três canções escolhidas para antecipar “Songs of Experience”, o irmão mais velho de “Songs of Innocence” (2014).
Há várias formas de ler a intervenção do rapper na central elétrica dos U2. Desde logo, é a continuação de uma troca de galhardetes iniciada em “Damn”, com a visita de médico da banda em “xxx”. A presença de Lamar é mais notada, sobretudo em “American Soul”, uma espécie de torre sonora de Babel com quadras como “It’s not a place/ This country is to me a sound/ Of drum and bass/ You close your eyes to look around” e o remate no refrão: “You are rock and roll/ You and I are rock and roll/ You are rock and roll/ Came here looking for American soul”.
Talvez sejam os U2 a pugnar por que o rock’n’roll ainda mude vidas e gerações. Ou a reclamar um “ainda somos”, quando o tempo verbal da história os empurra para um “foram”. Ou em missão de paz pela reconciliação que o radicalismo das coisas e das causas desuniu.
Por eles e pelo mundo, os U2 têm uma missão baseada na ordem de grandeza e acreditam que a música ainda pode ser esse megafone. Desde a ascensão à primeira liga nos EUA com o vintage “The Joshua Tree” – reeditado e revisitado em digressão no início deste ano –, os U2 não só se habituaram a ver o mundo dos pontos mais verticais da cultura popular como gozaram de um crédito quase ilimitado. Apesar das reações cada vez menos entusiasmadas e das vendas decrescentes, álbuns como “All That You Can’t Leave Behind” (2000), “How To Dismante An Atomic Bomb” (2004) e “No Line On The Horizon” não beliscaram a reputação.
O pior foi quando os utilizadores do iTunes receberam “Songs Of Innocence” na conta sem terem encomendado a remessa. O cozinhado entre a banda e a Apple deveria ser uma manobra de marketing bem-intencionada, mas saldou-se por um apedrejamento nas esquinas e praças do séc. xxi: as redes sociais. Bono foi obrigado a pedir desculpa. E o gesto, apesar de ter feito o álbum atingir o número astronómico de 26 milhões de downloads (gratuitos), fez ricochete, e aos olhos do universo tecnológico, a intrusão na individualidade é, segundo a ética da internet, uma contraordenação grave.
Os danos causados não se notaram na estrada. Os bilhetes continuaram a voar por todas as cidades do mundo onde os U2 apresentaram a digressão “Innocence + Experience” – duas noites consecutivas em que faziam strip-tease numa noite e se ligavam à corrente na outra. Nem na revisitação de “The Joshua Tree”, o álbum da conquista da América, o Santo Graal quase inatingível para quem atravessa o Atlântico.
Esse momento foi decisivo porque a revolução tecnológica já anunciava uma reforma do mainstream. Nessa reorganização da informação há espaço para Beyoncé, Drake, Bruno Mars, The Weeknd, Kanye West e Kendrick Lamar. Tal como Madonna, os U2 lutam pela sobrevivência entre os grandes e precisam mais de Lamar, hoje, do que o inverso.
Tal como em episódios anteriores, baralham as memórias para voltar a dar. Por exemplo, quando descem à cave na recordação pós-punk de “The Blackout”. Ou na já típica balada de esperança no mundo “Love Is Bigger” – uma espécie de discurso adaptado para versículos pop.
E há “American Soul”, a chave para decifrar quem são estes U2, de onde vêm, onde querem chegar e com que fim. Kendrick Lamar na pele de Martin Luther King, riff tipo White Stripes e Bono a puxar pelo lado negro da força.
“Songs of Experience” é editado amanhã, embora já estivesse prometido há três anos, desde que “Songs of Innocence” acordou um dia junto ao comando do LCD.