“A primeira vez que verbalizei isto foi como abrir a caixa de Pandora. Nunca mais me largou. Já se passaram mais de dez anos. Agora, não dá como escapar ao rótulo de mulher que não quer ter filhos.” Lígia Gomes, 32 anos, é uma das mulheres que aceitam dar o testemunho ao i sobre o que é assumir para si, e para os outros, que não se quer deliberadamente ser mãe. Numa altura em que as técnicas de procriação alargam as hipóteses de maternidade, não querer ter filhos continua a ser tabu e outras tantas mulheres com esta mesma ideia não quiseram falar sobre o que sentem. Que espaço há para assumir que não se quer ser mãe?
Em maio, um livro editado com o título “Mães Arrependidas”, que relata como há mulheres que preferiam ter sido mães de ninguém – umas que o descobrem depois de os filhos nascerem e outras que são empurradas para a maternidade -, tocou um assunto poucas vezes debatido mas que vai ganhando as suas formas de visibilidade. A autora israelita Orna Donath diz ao i “ansiar pelo dia em que as mulheres possam não ser mães sem terem de provar alguma coisa em troca”, nomeadamente que querem ser mulheres de carreira. Nas redes sociais há alguns fóruns dedicados ao tema. A comunidade brasileira no Facebook “Eu não quero ter filhos”, seguida por 1442 pessoas, é um exemplo. E algumas das imagens que partilham querem desmontar mitos: mulheres que não desejam filhos não são egoístas, não são imaturas, não odeiam crianças, não são más, não são menos mulheres…
Em 2008, a jornalista Laura Alves publicou o livro “Não Quero Ser Mãe – Quando as mulheres decidem não ter filhos”. Este ano, em Espanha, a subdiretora da revista “Cosmopolitan” editou um projeto idêntico,”No madres”, com testemunhos de dez mulheres. Também do outro lado da fronteira, três amigas lançaram o projeto de documentário [m]otherhood, com o qual esperam vir a contribuir para desfazer o estigma. “Estás cansada que te perguntem porque não queres ter filhos? Tem-nos mas sentes que não é tão maravilhoso como te disseram? Pensas que se devia gerar um debate sobre este assunto?”, pedem as promotoras na ficha de inscrição no site m-otherhood.com. Uma delas, de 29 anos, pediu mesmo para ser esterilizada.
Uma minoria assim tão pequena?
Embora em Portugal se discuta sobretudo a quebra na natalidade, o facto de as mulheres adiarem o nascimento do primeiro filho – em 1980, as portuguesas eram em média mães pela primeira vez aos 23,6 anos e, atualmente, isso acontece aos 30,3 anos – e também o facto de os portugueses quererem ter mais filhos do que aqueles que têm efetivamente – em média, desejam dois filhos mas têm um – são alguns indicadores sobre o que parece ser uma fatia da população, senão maior, pelo menos mais audível nos dias de hoje.
De acordo com o último Inquérito à Fecundidade e Família realizado pelo Instituto Nacional de Estatística em 2013, entre os 18 e os 49 anos, 7,9% das mulheres não têm filhos nem tencionam tê-los. São quase oito em cada cem mulheres. A percentagem sobe com a idade: entre os 40 e os 49 anos, a maioria das mulheres já foi mãe pelo menos uma vez (84,1%), mas 10,7% – um décimo – não querem assumidamente ter filhos.
Ser mãe é o natural ou uma norma imposta? Orna Donath, socióloga que tem teorizado sobre o tema com base também nos depoimentos de mulheres que foram mães e se arrependeram, acredita que, para muitas mulheres, a transição para a maternidade não é uma escolha livre e fazem-na por diferentes motivos, desde o condicionamento pela “norma fértil” ou porque é a vontade do companheiro. “Num ambiente social pró-natal pode ser difícil para uma mulher aperceber-se e admitir, antes de mais para si mesma, que não quer ser mãe. Uma das principais razões para esta dificuldade é a exigência de rejeitar os papéis dentro da própria mulher que não se enquadram nos sistemas e nas normas comuns”, escreve a autora, alertando para que a capacidade de expressar isso pode ser mais fácil nas mulheres dos grupos sociais mais influentes.
Orna Donath aponta ainda outro problema na discussão, que passa por encarar a maternidade ou a carreira como as duas únicas opções à disposição da mulher. “Partir do princípio de que ou uma mulher quer ter filhos e criá-los ou quer participar na ‘esfera pública’ asfixia outros desejos que existam por parte de um número desconhecido de mulheres que não querem nenhuma das duas coisas.” A socióloga, que inquiriu também mulheres que não queriam ser mães e não apenas as que se arrependeram, assinala que algumas afirmaram que “apenas” queriam ou tinham de ganhar a vida sem quaisquer aspirações a serem mulheres de carreira, como ainda sublinharam que o facto de não quererem ser mães, na verdade, as libertava da pressão de se tornarem mulheres de carreira”.
Os motivos
No Inquérito à Fecundidade de 2013 questionavam-se homens e mulheres sobre os motivos mais importantes na decisão de ter filhos. Ver os filhos crescer e desenvolver-se é a primeira resposta de ambos os sexos mas, para as mulheres sem filhos, a realização pessoal é o segundo fator mais importante para a maioria. Na realidade, era apontado por 97,3% das mulheres em idade fértil que ainda não tinham sido mães e por 89,6% dos homens. O inquérito também conclui que os motivos financeiros são os constrangimentos mais apontados para não ter mais filhos, mas é algo mais expressivo tanto por parte dos homens como das mulheres que já os têm. Um terço das mulheres sem filhos consideram importante na decisão de não os ter não querer essa responsabilidade – percentagem idêntica entre as que já têm filhos e não querem mais. Mas 34,5% declaram ser um motivo importante ficar com menos tempo para outras coisas importantes na vida, justificação com que só concordam 19% das mulheres que já têm filhos e não querem aumentar a prole. *Com Beatriz Dias Coelho