Carlos Magno: ‘A culpa é sempre da natureza ou dos ex-governos’

‘Sócrates tinha razões para ser perseguido, e o Correio da Manhã tinha direito a perseguir Sócrates’, ouviu-se na sala em que Carlos Magno falou sobre a ERC, média e política

«O caso foi mal gerido do ponto de vista político». Carlos Magno, o presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), tem, sobre os incêndios deste ano, cáustica perspetiva: «Preocuparam-se mais com a informação do que com quem foi vítima da natureza ou das falhas do Estado. É preciso parar e pensar».

Esta semana,   num jantar/debate no Grémio Literário, Magno soltou um pouco do que lhe ia na alma e houve até espaço para ironia. «Em Portugal a culpa ou é da natureza ou é dos anteriores governos». E em 2017, de facto, assim foi. «Nos últimos anos do governo Sócrates falava-se em OTA e TGV. Agora, falamos em Tancos e Siresp», estabeleceu em paralelo. «Quem disser que Tancos é uma anedota ou que o Estado falhou em Pedrógão Grande parece que está a cometer uma heresia», prosseguiu o homem que regula a imprensa desde 2011, sublinhando não estar a «fazer uma declaração política, de crítica ou elogio ao anterior Governo».

Carlos Magno falou na sala Luís XV, facto historicamente incompatível não fosse tratar-se do homólogo português na vez do imperador sacro-germânico. O ainda presidente da  falou no jantar/debate organizado pelo Clube de Imprensa e pelo Centro Nacional de Cultura. As introduções nos jantares do Grémio, desta vez em sala mais intimista que o habitual, são já conhecidas pela densa simpatia com que apresentam o orador convidado. No SOL quase se fica esperançado em ser conferencista apenas para um dia ser tão magnanimamente evocado. Mas não foi o caso esta semana.

Não que o resumo biográfico e profissional de Carlos Magno tenha pecado por falta de fraternidade, mas por que a pressa para ouvi-lo era tanta que não se perdeu grande tempo com preliminares institucionais.

Questionado por este jornal sobre os alegados elogios do atual primeiro-ministro, António Costa, à linha editorial da TVI aquando do negócio privado entre o canal televisivo e a Altice, Carlos Magno ponderou: «Eu não sei se o atual primeiro-ministro ficou satisfeito com aquilo que o presidente da Altice lhe disse porque não estive nas reuniões entre o primeiro-ministro e o presidente da Altice», começou. «Não quero acreditar que se passou aquilo que se diz», contrapôs, sobre a saudação de Costa à linha editorial do canal, que considera mais «um mito urbano» do que outra coisa. «Terá sido uma piada para aquecer; não terá sido conversa de fundo». E se foi, diz Magno, seria «grave». Ele, voz solitária que não se opôs ao negócio, não hesita em dizer que «o impasse na ERC» no último ano «foi um exercício de cinismo». «Esta equipa poderia ter sido eleita há um ano. Não foi e não sei porquê», respondeu, ainda ao SOL, quem daqui a cerca de duas semanas deixa de presidir à ERC.

O também professor de Comunicação Social e ex-jornalista deu meia palestra em género de aula e a restante metade em jeito de artigo de opinião. Entre o dito e o inquirido, jantou-se creme de marisco e posta de novilho com cogumelos selvagens e batata a murro. À mesa com o SOL conversou-se sobre o tema do ciclo – ‘O Estado do Estado’ – e sobre a ciência do babete, contando um veterano do uso do mesmo que a primeira vez que viu um tratava-se «de um atacador de sapatos com duas molas de estender a roupa». Felizmente, nesse sentido, os tempos (e os babetes) evoluíram. 

Na mesa atrás, onde se sentava Magno com Dinis de Abreu e restantes eminências anfitriãs, ter-se-á ouvido o convidado dizer algo como «Sócrates tinha razões para ser perseguido, mas o Correio da Manhã tinha direito e o dever de persegui-lo». A audição do SOL é que (já não sendo como dantes) falhou em confirmar. 

O prólogo do «quase ex» presidente da ERC foi esclarecedor. Lembrou os seus anos à frente de uma entidade em que se leva «muita pancada» e se fica «caladinho». «Nunca respondi a um jornalista, nunca fiz um desmentido e nunca publiquei em lado nenhum, por muito que isso me custe», recordou Carlos Magno, de pé, e elaborando acerca do «difícil paradoxo» característico da sua função: «Defender a liberdade de expressão», por um lado; «defender os cidadãos dos abusos dos média», por outro. E, no fim, «há sempre alguém satisfeito e alguém muito irritado», o que obriga a «nervos de aço». 

Procurou fugir às controvérsias da atualidade sem deixar de dar aperitivos e advertências. «Penso coisas várias e muito pouco edificantes que não poderiam ser ditas num jantar destes», brincou, falando da inconsequente transferência da Infarmed para o Porto, de onde é natural. Sobre a EMA, a agência europeia do medicamento que Portugal falhou em conseguir para si, disse: «Temos alguma tendência para deixar processos a meio e não falar tanto deles». 

Do contexto europeu, lembrou que a União Europeia obriga a que 50% dos conteúdos televisivos sejam produzidos por Estados-membros e que, com o Brexit, essa «é uma oportunidade que os espanhóis já estão a aproveitar». «Se calhar a Altice, mais do que a TVI, quer a Plural. O objetivo não é ter um sistema de televisão que está condenado a dez anos, mas se calhar ter quem produz conteúdos baratos e bons», sugere, de volta ao tabu.

Para Magno, depois mais genericamente, «andamos aqui a discutir futebolês» e há um «excesso de política». «Estou a falar de fora porque ainda estou algo inibido de falar do que se passa cá dentro», sorri. E sobre lá fora foi também direto: «O senhor Trump não inventou nada. A Fox News serviu de muleta para a sua chegada ao poder e toda a gente percebeu que foi eleito à base de notícias falsas. Hillary foi vítima disso. Os Estados Unidos destruíram a mulher mais capaz para ser presidente». 

Elaborando no diagnóstico, o autor falou em «conflitualidade artificial» – os ódios dos grupos de futebol estão «a contagiar tudo e todos», insiste – e aceleração da atualidade. «Hoje se falarmos do Panteão vamos falar de um jantar; já não falamos dos nossos heróis», lamenta. A capacidade para ouvir o outro desapareceu, a surdez propagou-se, ficámos «incapazes de ter um debate que demore mais tempo do que o tempo de dizer ‘és estúpido’» e a «imunidade editorial das redes sociais» contribuiu para tal. 

«Temos um sistema mediático ainda sustentado pelo sistema financeiro e a classe política beneficia disso. Não há grande diferença entre os tabloides e os jornais ditos de referência. Os cidadãos acreditam mais nas tarólogas do que nos economistas», atira, citando um estudo. 

Deixou também breve nota sobre a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa e o seu passado na atividade jornalística. «Percebo o sucesso que o nosso Presidente da República está a ter. Com o passado que lhe conhecemos, inventou factos políticos, e agora atingiu a sua maturidade», analisou, elevando depois a importância de Marcelo nos momentos de dor como os vividos este ano. «É uma profecia que se cumpre a si mesma», concluiu, acerca do político.

Nas perguntas finais, assumiu não ter «preconceito contra nenhum financiamento» aos média, incluindo o estatal, mas deixou reservas. «Não me peçam para financiar o jornal ‘a’ por ser ‘serviço público’ e não financiar o ‘b’ porque diz mal de não sei o quê», avisou. Segundo Magno, a «liberdade editorial» deve ser a prioridade e o «Estado não deve intervir nas empresas, que devem resolver os seus próprios problemas».  

«Deve deixar-se morrer quem tem de morrer e não prolongar artificialmente a vida de quem está em contraciclo», disparou, com a sua omnipresente frontalidade. 

O «anticlericalismo», terminou, seria outro eventual problema do Estado como mecenas jornalístico. «Também não me peçam para não financiar a Renascença por ser da Igreja! E eu sou ateu», gracejou. «Ainda», acrescentou uma jornalista assumidamente católica, lembrado que há sempre esperança. Talvez até para o jornalismo. 

 

(Nota: a audição do SOL, referida neste texto, foi entretando retificada por um presente e consequentemente corrigida às 21h05. São coisas da idade).