Domingos Abrantes. “Os comunistas devem ter uma conduta de vida. Há coisas que se colam”

Domingos Abrantes acusa Zita Seabra de mentir e assume que tem “pouca consideração” pelos dissidentes

Domingos Abrantes tem 81 anos e orgulha-se de ser o único membro do Conselho de Estado que não é doutor. Garante que preferia morrer a falar na PIDE e assume que tem “pouca consideração” por aqueles que saíram do PCP e mudaram de partido. “Ganharam muito em passar para o lado do capital.” Foi, nas últimas décadas, um dos importantes dirigentes do partido e congratula-se com esta solução governativa. 

Lembra-se do dia em que se tornou comunista?

Tenho memória do dia em que ingressei no MUD Juvenil. Foi um jovem meu amigo que me abordou e isso é uma coisa que ficou gravada. Foi esse mesmo jovem que me ligou depois ao partido. 

Com que idade?

Tinha 17 anos.

Era operário…

Era operário. Nessa altura trabalhava na Fábrica de Material de Guerra.

É o único operário no Conselho de Estado.

Exatamente. É uma coisa curiosa porque sou o único que não é doutor. Isso tem algum significado, porque tem em conta a natureza deste partido. Seria difícil isso acontecer em qualquer outro partido. 

Como tem visto esta experiência governativa? Posso chamar-lhe uma aliança entre o PS e o PCP?

Não. Não é uma aliança. Esta solução governativa ou, se quisermos, esta solução política tem de ser vista do ponto de vista político e institucional. Do ponto de vista institucional, ela tem uma enorme importância porque se interrompeu uma governação de direita com todas as consequências que isso teve para o país. 

Afastar a direita do poder foi a razão mais importante para o PCP aceitar esta solução?

Nalguns aspetos pode ser a mais importante. A direita tinha um projeto muito claro de aprofundamento dessa ofensiva, podemos dizer que queria quase fazer um ajuste de contas com o que ainda restava do 25 de Abril. E, portanto, o afastamento da direita era o nosso objetivo estratégico fundamental. Esta solução política teve outro resultado de uma enormíssima importância, porque a Assembleia da República estava transformada numa caixa de ressonância dos governos. Os deputados estavam ali para sancionar as políticas governativas e esta solução permitiu restituir dignidade à função dos deputados. A aprovação deste Orçamento é disso um bom exemplo. A terceira questão é que já se tinha criado a ideia de que havia partidos que podiam existir, caso do PCP, mas não podiam intervir nas soluções governativas. Acabar com essa ideia de que havia partidos que não podiam intervir nas soluções governativas foi um grande avanço.

O que fez com que esta solução não fosse possível durante 40 anos de democracia?

Não aconteceu antes, mas nós batalhámos por isso. Houve dezenas de encontros no sentido de nos entendermos para barrar o caminho à direita. O que aconteceu foi que, desta vez, conjugaram-se vários fatores, nomeadamente a disponibilidade do PS para inverter o rumo de 40 anos de aliança com a direita. Isso é um facto. Podemos dizer que o seguro de vida da política de direita tem sido a aliança do PS com os partidos de direita. A direita conseguiu conquistas monumentais ao longo destes anos, reconversões do regime democrático, porque contava com o PS. Desta vez houve uma disponibilidade do PS para mudar de rumo. Existia também a nível das massas um sentimento de que era preciso mudar. Mas o PCP está longe de considerar que esta é a solução ideal e está longe de considerar que esta é a política necessária. Foi aquilo que foi possível.

Não existe uma contradição quando o PCP vota a favor dos Orçamentos deste governo e ao mesmo tempo contesta o governo na rua?

Isso nem é novo. Nós estivemos nos governos provisórios e isso é uma questão de princípio. Não abdicamos da defesa desses valores. Nós assumimos e cumprimos os compromissos que foram assumidos. Esperamos que o Partido Socialista também os cumpra. 

Está a cumprir?

Sim. Até agora tem cumprido. A nossa opinião, como é sabido, é que é necessário ir mais longe. Há muita coisa que não foi revertida e que nós não aceitamos que se considere que foi caso perdido. Por exemplo, o PS não quer mexer nas leis laborais e foi das grandes reversões que houve em termos dos direitos dos trabalhadores. 

O mais certo é o governo não ceder a essa pretensão do PCP.

O PS responde por ele. As cedências do PS ao patronato são claras. Houve enormes retrocessos que degradaram imenso as condições dos trabalhadores. Hoje estamos confrontados com um problema que devia preocupar todos os democratas, porque o patronato atua na maior das impunidades. Os trabalhadores não sabem qual é o seu horário de trabalho, Temos horários de trabalho com 60 e 70 horas, sete dias por semana, e é pegar ou largar. Nós não damos por adquirido que isso é para ficar assim. O PS, a certa altura, tem de fazer opções. 

Há pouco lembrava que o PS, até agora, tinha sempre optado por governar com a direita. Julga que o PS mudou ou foi apenas uma questão de oportunidade virar-se agora para os partidos à sua esquerda? 

É uma boa pergunta. As alianças do PS com a direita não foram conjunturais. Eu quero recordar que nós tínhamos um acordo com o PS antes do 25 de Abril. No dia 23 de março de 1974 houve um encontro, ao mais alto nível, entre delegações do PCP e do PS em que foi estabelecido um acordo, porque estava no horizonte o derrubamento da ditadura. A ideia era que o entendimento entre os dois partidos era fundamental para a consolidação do regime democrático. O PS rasgou isso muito rapidamente. O grande problema é que não há um Partido Socialista. Há vários. Repare que há gente que rejeita esta solução política e defende o bloco central.

O Francisco Assis, por exemplo, defende que o PS está mais próximo do PSD do que do PCP em questões fundamentais como a União Europeia. Não tem alguma razão?

O PS, como disse, são vários partidos. Conheço bem o PS. Existe uma situação curiosa porque temos um Partido Socialista que nunca fala do socialismo. Não me consegue indicar um dirigente do PS que fale em socialismo. É uma coisa esquisitíssima. Depois é esquisito – pelo menos, coloca algumas interrogações – o facto de haver muitos dirigentes do PS que são gestores de grandes grupos económicos e financeiros e trabalham para bancos. Isto para dizer que aquilo que o Assis disse tem algum fundamento. A base das alianças do PS com a direita, ao longo dos anos, tem um suporte de interesses de classe comuns. 

Conheceu bem Mário Soares. Falavam muitas vezes?

Encontrei-me dezenas de vezes com o dr. Mário Soares. O problema que nós enfrentámos, a seguir ao 25 de Abril, e continuamos a enfrentar hoje é que havia uma corrente de democratas, à qual o dr. Mário Soares pertencia, que queriam um regime de liberdades democráticas, mas queriam manter os monopólios, os latifúndios e as alianças internacionais. Queriam um regime de liberdades, mas mantendo os que eram responsáveis pela ditadura. Esta contradição existiu e continua a existir. Mas também julgo que há uma corrente no PS…

Mais à esquerda…

Repare que os partidos socialistas estão a pagar caro por terem feito alianças com a direita. O Assis, quando fala que o futuro é uma aliança com a direita, devia lembrar-se daquilo a que conduziu essa situação na Grécia, em França, na Holanda… 

Olha para o PS com desconfiança? 

Não olho com desconfiança. Eu repito: eu participei numa delegação do PCP em que houve uma discussão sobre este problema e nós afirmámos que considerávamos a aliança com o PS como uma questão fundamental para a consolidação da democracia. Isto faz toda a diferença. É evidente que não se fazem alianças se não há uma base comum de questões fundamentais. 

Usou os contactos que tem com alguns socialistas para ajudar a construir esta solução política?

Nós sempre falámos com socialistas. Isso é uma coisa que é conhecida. Creio que aquela feliz frase do Jerónimo de que “o PS só não forma governo se não quiser” foi decisiva para barrar o caminho a novas tentações da direita.

O PS tem tentado assumir a paternidade desta solução política.

É um facto histórico. Ficou claro para o país que a direita só iria para o poder se o PS quisesse. 

O PCP teve um mau resultado nas autárquicas. Não teme que esta solução política beneficie o PS e prejudique o PCP?

Não. Querer fazer uma ligação direta entre os resultados e esta solução política não faz sentido nenhum. É curioso que a direita insista na ideia de que isto foi um mau negócio para o PCP. Quando a direita fala nisto, há razões para desconfiar. A direita está nervosa e tem alguma razão para isso, porque tinha dado por adquirido que a política que tinha seguido era para continuar e isso não aconteceu. Há aqui toda uma chantagem de um anticomunismo serôdio. 

Os fracos resultados eleitorais do PCP não o preocupam? 

Tínhamos razões para estar preocupados se o PCP perdesse a sua autonomia. 

Se o PS voltar a precisar do PCP, a seguir às próximas eleições, o que vai acontecer? 

Esta solução nasceu de um quadro especifico muito concreto. Tratava-se de barrar o caminho à direita. É evidente que esta solução provou que não há políticas de via única, provou que era possível outra política, e isso não é um ganho pequeno, mas é limitado. Uma grande parte dos nossos recursos são absorvidos pelo serviço da dívida. Portugal está inserido na União Europeia e o PS faz da União Europeia a sua bandeira, mas nós somos um país cada vez mais limitado na sua capacidade de decisão e na sua soberania. Nós, aparentemente, decidimos questões orçamentais, mas está ali sempre um parceiro a pedir-nos contas. Para que serve o parlamento? 

Apesar de todas essas divergências entre o PCP e o PS, tem sido possível alguma estabilidade. Julga que o governo vai durar quatro anos?

Há muita gente que gostava que isso não acontecesse. Basta ouvi-los. Dá ideia que lá em casa acendem umas velinhas para que isso não se concretize. Nós cumpriremos as condições que foram acordadas, mas a bola está do lado do PS. O PS é que é governo e os Orçamentos é que põem lá o que é decisivo. Se aumenta salários, carreiras… Se não for lá posto, se não for decidido no concreto… Não há acordos em abstrato. Isto é passo a passo, é ano a ano. Vamos ver o próximo. 

O PCP entrar num governo do PS já será um passo mais difícil ou não?

O PCP não rejeita participar no governo desde que o nosso povo lhe dê as condições para isso. Ninguém pode pensar que iríamos para o governo dar aval a limitações da nossa soberania ou a agressões a outros povos. Isso não vai acontecer. Isso era o fim. Temos um património de gerações sucessivas que deram o melhor da sua vida pelo Portugal democrático, de-senvolvido e soberano. Não vamos hipotecar esse património. 

Mas se António Costa convidar o PCP para ir para o governo… 

A primeira coisa que os que cá estiverem nessa altura perguntarão ao António Costa é: qual é a política?

Já conhecemos a política do PS com António Costa durante estes dois anos.

Não é a política destes dois anos. Isso, então, nem valia a pena fazerem-nos uma proposta. 

Voltando ao início desta conversa: a sua vida mudou completamente quando entrou para o partido, com menos de 20 anos…

É evidente. Uma coisa é ter uma vida normal, estar com os amigos, ir ao café… A minha vida passou a ser uma vida de clandestino.

Não lhe custou sacrificar a juventude? 

A minha juventude foi uma juventude de luta. Entrei numa fábrica aos 11 anos. Era normal na época. Foi uma juventude de entrega à resistência com o ardor próprio dos jovens. 

Sempre teve essa convicção de que um dia aconteceria qualquer coisa como o 25 de Abril?

Demorou mais do que eu imaginava naquela altura, mas tinha confiança absoluta. Podia não ver… A esperança de um comunista era ver o derrube do fascismo. Tive essa felicidade. Muitos camaradas deram a vida por isso. 

Não tinha medo das consequências de entrar para o PCP, nomeadamente de ser preso e torturado?

Medo? Não. Costuma dizer-se que quem tem medo compra um cão. Qualquer comunista sabia que a possibilidade de ser preso era enorme. Foram muito poucos os que não foram presos. Outra coisa era estar preparado para o embate com a polícia.

Como é que resistia? Como se preparava para enfrentar a tortura?

Como é que lhe posso explicar… Era preciso ter essa determinação. A pessoa que entrava na polícia tinha de marcar o ritmo. Era preciso deixar claro à polícia que dali não levava nada. Quando digo marcar o ritmo é não dar as mais pequenas abébias à polícia. Se houvesse ali uma hesitação, um enfraquecimento… Tinha de mostrar à policia que não estava assustado. Eu, por exemplo, nunca disse o meu nome. A mim, nunca me ouviram o nome. Se eu dissesse, era uma cedência. 

Compreende as pessoas que não resistiram e falaram na PIDE?

Aquilo não é pera doce. Eu, sobretudo na segunda prisão, não sabia se sairia dali com vida. Estive 16 dias na tortura do sono. As pernas incham brutalmente. Os pés já não cabem nos sapatos. A pele começa a rasgar. A morte é uma coisa real.

Preferia morrer a falar?

Claro. Eles diziam: “Você vai morrer.” O médico ia ver se a pessoa aguentava, mas às vezes enganava-se. A polícia vai esticando, esticando… Houve camaradas que se assustaram e não aguentaram. Percebo isso, mas o dever deles era aguentar. 

O que lhes acontecia?

Eram expulsos imediatamente.

O PCP mandou executar algum militante por causa disso?

A polícia nunca provou isso. As pessoas que foram acusadas disso, sobretudo no chamado caso de Belas, foram presas e a polícia não as acusou disso.

O que fez com que tantas pessoas tivessem abandonado o Partido Comunista? O que acha que fez com que tantos militantes, alguns com grandes responsabilidades dentro do partido, tivessem deixado de acreditar no ideal comunista?

O problema é se alguma vez acreditaram. Esse é que é o problema. Terei de concluir que estavam no sítio errado. Tenho pouca consideração pelas pessoas que dão essas piruetas. Gosto mais das pessoas coerentes. Ser comunista tem custos. Tem poucos benefícios e tem muitos custos. Sempre foi assim e continua a ser. Nós não nos revemos nesta sociedade. Não escondemos que não é isto que queremos, não aceitamos que a humanidade esteja condenada a um mundo de miséria, de exploração, de guerra… Isto não vai ser sempre assim. Mas isto é uma caminhada e este partido só existe com pessoas com convicções. Sem convicções não se chega até ao fim.

E muitos perderam essa convicção…

Alguns deles, quando viviam da mesada do papá, eram revolucionários, mas, a certa altura, o capitalismo… Veja bem o percurso de alguns. Ganharam muito em passar para o lado do capital. 

Um comunista tem de abdicar de certos bens materiais?

Não. Isso é uma treta. Eu ouvi a propósito disto da Revolução de Outubro as maiores barbaridades. Ouvi há dias na televisão o sr. dr. Marçal Grilo dizer o seguinte: “Os comunistas têm ódio a quem tem alguma coisa.” O nosso problema não é os que têm alguma coisa, o nosso problema é com os milhões de pessoas que não têm nada. A grande parte da humanidade não tem nada. Não me venham com essa história da propriedade. O que nos preocupa não é os que têm o seu carro e a sua casa. Nós somos é contra a propriedade que permite explorar outras pessoas. Eu tenho carro, tenho casa. Até tenho duas casas. 

Mas um comunista que compre um carro de alta cilindrada, por exemplo, não é malvisto dentro do partido?

É evidente que os comunistas devem ter uma conduta de vida, porque há coisas que se colam. Mas nós temos camaradas ricos. Temos pessoas que, do ponto de vista dos seus interesses de classe, tinham muito a perder com o comunismo. 

A Zita Seabra, que foi expulsa, escreve num livro sobre o seu percurso no PCP que alguns elementos do partido lhe vigiavam a casa e a seguiam na rua. O Domingos Abrantes, nessa altura, teve algumas conversas com a Zita Seabra sobre essas divergências. Era comum o PCP usar estes métodos?

Conhecia-a bem e estou em condições de saber onde é que começa a verdade e a mentira. O grau de mentira ultrapassa todas as marcas. Basta ler esta última entrevista dela ao “Expresso” – algumas coisas, até um bocado megalómanas. Ela conta ali coisas dela que são mentira. Completamente mentira. É uma pessoa que perdeu o sentido da seriedade. A pessoa podia mudar de ideias e ser séria. 

Nunca teve dúvidas…

O que entende por dúvidas? É as pessoas pensarem que lutaram por uma coisa que não tem razão de ser? Isso não. Houve erros, houve avaliações que não foram tidas em conta, mas isso não põe em causa, nem pode pôr em causa, este projeto de profunda transformação do mundo. Toda esta campanha à volta da Revolução de Outubro é no sentido de convencer os de baixo que estão condenados a viver assim. 

Não é pouco dizer que houve erros tendo em conta o que aconteceu na União Soviética?

Uma coisa são erros, desvios e violações de direitos e princípios. Isso é um processo muito complexo. Houve sem dúvida avaliações do processo que foram subestimadas. Não existem razões nenhumas para repudiar e abdicar dos valores da Revolução de Outubro. A Revolução de Outubro não foi só desvios e violações. Foram conquistas colossais. Ninguém quer falar disso. Nessas toneladas de textos, ninguém fala das enormes conquistas. Só falam dos desvios. Não lhes convém. Conquistas que ainda hoje muitos países não têm e passaram cem anos. Introduziu as oito horas de trabalho, a igualdade entre homens e mulheres, era um país de analfabetos e foi o primeiro país a erradicar o analfabetismo… 

Isso pode apagar os crimes que foram cometidos?

Ainda bem que fala dos crimes. Falam dos crimes do Estaline, mas não falam dos crimes do capitalismo. O capitalismo matou e continua a matar milhões de pessoas. Não vejo essas pessoas, que falam dos crimes do Estaline, indignadas com o capitalismo. A guerra não é o resultado do capitalismo? Estas bombas que caem no Iraque, no Afeganistão, na Síria… E depois há um truque porque o Estaline é comunismo e o Hitler não é capitalismo. O Hitler é capitalismo. O fascismo português é capitalismo. O capitalismo foi construído em muitos lados à custa de milhões de escravos. O problema mais grave é querer associar a ideologia a uma pessoa no concreto e aos crimes. Você acha que é justo associar as pessoas que vão a Fátima, por exemplo, aos crimes da Igreja? A Igreja não matou centenas de milhares de pessoas? Não queimou pessoas vivas? Eu não insulto nenhum católico a dizer que a Igreja matou muitas pessoas. Mas o que os preocupa é que os trabalhadores não aceitem este mundo de exploração. Por isso é que escrevem e falam.