No passado dia 21 de novembro, o país foi surpreendido pelo insólito anúncio, feito pelo ministro da Saúde, de que o Governo decidira transferir o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), que funciona em Lisboa desde a sua criação, há mais de 20 anos, para a cidade do Porto.
Se o Governo pretendia dar início a um processo de deslocalização de serviços públicos da administração central do Estado, não podia escolher um pior momento, um pior exemplo e um pior modo de decisão.
Um ‘pior momento’ porque, precisamente na véspera daquele anúncio, fora conhecida a derrota da candidatura do Porto para sede da Agência Europeia do Medicamento (EMA) – a qual deverá deixar a cidade de Londres, no contexto do processo de saída do Reino Unido da União Europeia.
E ninguém duvidará de que esta transferência seria uma compensação para o autarca do Porto, cuja inqualificável reação («A adorar o ressabiamento de alguns; assim vale a pena») diz muito sobre o seu autor, a consideração que lhe merecem os portugueses e o (des)conhecimento que revela sobre o que é o Infarmed.
Um ‘pior exemplo’ porque o Infarmed tem características e especificidades que só a ignorância pode considerar compagináveis com uma deslocalização de 300 quilómetros.
Com efeito, esta decisão pode descaracterizar aquele instituto, cujos melhores quadros – altamente especializados e diferenciados e, por conseguinte, possuidores de uma alta taxa de empregabilidade – estão já a ser objeto de tentativas de contratação por parte de outras entidades do setor.
Além disso, o Infarmed corre o sério risco de perder uma parte significativa da sua receita no âmbito do trabalho de avaliação de medicamentos e outros produtos de saúde a nível europeu, a qual ascende a mais de uma dezena de milhões de euros anuais.
De resto, a circunstância de o Infarmed dispor de um laboratório de referência internacional, no qual se investiram mais de 25 milhões de euros – e que não é suscetível de deslocalização nem pode deixar de funcionar em estreita e próxima articulação, designadamente com os demais serviços técnicos daquele instituto -, torna esta ideia verdadeiramente alucinante.
Finalmente, um ‘pior modo de decisão’ porque se tomou uma decisão sobre um assunto sério e importante com uma ligeireza gritante, imprópria de governantes dignos desse nome.
O Infarmed foi ignorado, os seus dirigentes não se pronunciaram, e os trabalhadores só souberam do ‘êxodo’ de que serão alvo pela comunicação social (lembre-se que, num inquérito aos mesmos, 97% responderam não concordar com a mudança e 91% manifestaram a sua indisponibilidade para a integrarem).
Quanto ao Presidente da República, este não foi igualmente informado, o mesmo sucedendo com os partidos com assento parlamentar, algo inaceitável quando é certo que aquele teria sempre de promulgar o diploma que efetivasse a referida alteração de sede, e estes deveriam ser envolvidos no processo (na medida em que a decisão do Governo só será concretizada em 2019, prolongando-se a sua concretização até meados da próxima Legislatura, o mesmo é dizer, já com um novo executivo em funções).
Mas igualmente grave é a tese peregrina, veiculada pelo primeiro-ministro e pelo ministro da Saúde, segundo a qual a decisão de transferência do Infarmed para o Porto estava há muito tomada.
Aqui, ou estamos perante uma mentira – e a decisão foi tomada num contexto de Plano B, para compensar o Porto por um eventual falhanço da candidatura do Porto a sede da EMA -, ou se trata de uma meia verdade e o Governo, quando anunciou inicialmente a candidatura de Lisboa a sede da EMA, previa já transferir a sede do Infarmed para o Porto (acreditamos se quisermos) ou decidiu-o quando apresentou esta última, escondendo tal facto à União Europeia (UE), o que, para além de estúpido, relevaria uma reserva mental indigna de um Estado-membro da UE.
Aliás, como pode o Governo pretender fazer crer que essa decisão estava tomada há muito quando o ministro da Saúde homologou o ‘Plano Estratégico do Infarmed para 2017-2019’ no final do passado mês de Setembro, nunca se referindo nesse documento oficial sequer a possibilidade da referida deslocalização?
Feita a asneira, o ministro da Saúde logo admitiu aos trabalhadores do Infarmed que o Governo pode recuar na decisão de transferência do instituto para o Porto, a qual viria mesmo a qualificar como mera «intenção», em contradição total com as declarações já feitas por António Costa. E, por falar no ‘chefe máximo’, agora ouvimos mesmo o ministro assumir as culpas, dizendo que «o responsável sobre essa má comunicação sou eu»…
Por mim, confesso que tinha o ministro da Saúde na conta de ser um governante competente e conhecedor do setor. Não lhe conhecia esta faceta de irresponsabilidade, precipitação e sonsice.
E que não haja equívocos: sou a favor da descentralização administrativa e territorial, considero o Estado português excessivamente centralista e defendo a transferência de competências para as autarquias locais, designadamente nos domínios sociais e mesmo económicos. Mas o que está em causa no Infarmed é mera deslocalização territorial. O organismo permanece na esfera da administração central e os seus dirigentes de topo nomeados pelo Executivo.
O Governo ainda vai a tempo de recuar neste erro crasso, antes de causar danos irreparáveis ao país e de destruir um serviço de excelência como é (ainda) o caso do Infarmed.
olharaocentro@sol.pt