Já que se fala tanto em micro-agressões eu gostaria de escrever sobre os micro-traumas. Os da Vanessa, claro.
Os traumas são uma coisa séria.
Os micro-traumas também não devem ser menosprezados. São micro, como as microempresas, as microradiografias, os microzoários. E os micróbios que, tal como os micro-traumas, podem transformar-se numa macro-chatice.
A Vanessa já teve algumas macro-chatices derivadas de uns micro-traumas.
– Caraças, pá, caraças. Hoje sonhei com o Zé Pedro.
– Com o Zé Pedro?
– Sim, com o Zé Pedro!!! Já viste o meu azar???? Não foi um sonho, caraças, foi um pesadelo.
O Zé Pedro foi um micro-pesadelo na vida da Vanessa, mas tudo aconteceu há tantos anos que juro que não me passava pela cabeça que o sono da Vanessa ainda pudesse ser colonizado pelas memórias do Zé Pedro. Enfim, mas de teorias de interpretação dos sonhos eu não percebo nada e até é um assunto relativo ao qual escolho a ignorância.
– Mas eu julgava que quase já nem te lembravas do Zé Pedro!
– Eu ia lá esquecer-me do Zé Pedro. Bem, a minha relação com ele não foi traumática, mas foi pelo menos micro-traumática. A nossa mente regista os micro-traumas. São pequenas feridas, estás a ver? Como quando uma pessoa está a cozinhar e se queima e depois fica com uma cicatriz que nunca mais sai… Olha esta aqui, por exemplo.
A Vanessa mostrou-me a mão, que tinha uma grande cicatriz, consequência de uma micro-descoordenação motora ao retirar uma pizza de pepperoni do forno.
Se é verdade que a relação da Vanessa com o Zé Pedro estava para o ranking das grandes paixões da vida de uma mulher como uma pizza de marca branca comprada no supermercado está para o ranking do Pantagruel, a coisa não deixou de ter a sua importância – afinal, a pizza industrial também se come e esporadicamente até pode proporcionar algum prazer.
E então a Vanessa decidiu desfiar-me novamente o seu micro-trauma com o Zé Pedro.
– É que o sacana conseguiu acabar comigo duas vezes! Nunca ninguém tinha acabado comigo duas vezes. Uma coisa é alguém acabar contigo uma vez. Isso é chato mas uma pessoa aguenta. Agora duas vezes? Como é que eu deixei que o gajo acabasse comigo duas vezes???? Ainda por cima eu só estava moderamente apaixonada por ele.
– Reconheço que é incompreensível, Vanessa. Deve ter sido uma grande seca.
Deixar que um gajo tipo pizza terminasse uma relação duas vezes com alguém era um ataque feroz à lucidez, à auto-estima, à inteligência da pessoa. A Vanessa tinha alguma razão para se sentir micro-agredida.
– Eu ainda não compreendo como deixei que isso acontecesse. Na verdade, da primeira vez até percebi a coisa. Ele não conseguia deixar a mulher.
Digamos que a primeira vez foi um clássico e quem nunca brincou aos clássicos que atire a primeira pedra.
– Mas da segunda vez, quando voltei a andar com ele, o tipo estava separado da mulher há mais de um ano! Dizia coisas horríveis dela! Que era maluca e assim. E, no entanto, poucos meses depois resolve acabar comigo e diz que decidiu voltar para a mulher. Eu devo ter sido muito burra para deixar que me acontecesse uma coisa destas! Duas vezes! E uma gaja que era doida, segundo ele dizia!
– Vanessa, se calhar ele também era um micro-traumatizado.
– Mas escusava de espalhar a doença, não é? E mandar-me um SMS às oito da manhã a acabar tudo!!!! Oito da manhã!! Tudo nesta história me faz sentir micro-traumatizada.
Eu concordo: qualquer coisa que me obrigue a estar a pé às oito da manhã deixa-me micro-traumas. Para a vida.