Ali Abdullah Saleh foi Presidente do Iémen durante 33 anos e ao longo de todo esse tempo sempre se etiquetou como o único homem capaz de manter o país unido contra aqueles que conspiravam para a sua destruição. «Existe uma conspiração contra a unidade e a integridade territorial do Iémen. Estamos aqui para servir e preservar o regime republicano com todas as gotas de sangue que temos», dizia amiúde. A sua saída do poder, em 2012, foi forçada, numa altura em que o Iémen se perfilava como um dos países mais pobres do globo, sofria com uma inflação e uma taxa de desemprego galopantes, tinha 40% da sua população a viver com menos de dois dólares por dia e ele, o líder, era suspeito de ter amealhado entre 30 a 60 mil milhões de dólares (cerca de 25 a 51 milhões de euros) através de práticas de corrupção e gestão danosa. Saleh aceitou a deposição, a custo, mas nunca anuiu com a perda de protagonismo. E foi por isso que se aliou aos rebeldes xiitas na guerra civil contra o seu sucessor. Os mesmos que o assassinaram na passada segunda-feira.
Nascido em 1946 na vila de Bay al-Ahlmar, no seio de uma família pertencente à tribo Sanhan, Saleh enveredou muito cedo pela carreira militar. Pelo exército da recém-criada República Árabe do Iémen – que em 1962 derrubou a monarquia e, com patrocínio do Egito, estabeleceu um regime republicano na região noroeste do atual território iemenita – combateu na guerra contra as forças monárquicas, apoiadas pela Arábia Saudita, Jordânia e Reino Unido, e uma vez derrotado o inimigo iniciou um caminho de sucessivas promoções até ser nomeado coronel.
A entrada na política deu-se em 1978 e logo pela porta maior. Na sequência do assassinato de Ahmad al-Ghashmi, em junho desse ano, Saleh foi chamado a integrar um conselho presidencial provisório, e um mês mais tarde viu o Parlamento confirmá-lo como Presidente da República Árabe do Iémen.
A braços com um território que era palco de permanentes conflitos entre as várias tribos iemenitas e que desde 1967 tinha como rival um Estado marxista, satélite da União Soviética, na região leste do presente Iémen, atropelavam-se as apostas que apontavam para um mandato curto – a CIA elaborou mesmo um relatório que previa a queda de Ali Abdullah Saleh ao fim de seis meses. Mas o novo Presidente ignorou o ruído, conseguiu reunir à sua volta as tribos desavindas e consolidou o seu poder com duas importantes reeleições em 1982 e 1988.
Adaptação e reação
O colapso soviético no início dos anos 90 revelou-se, no entanto, uma verdadeira faca de dois gumes. É certo que permitiu a Saleh juntar o norte republicano ao sul comunista, e tornar-se no primeiro Presidente de um Iémen unificado, mas também lhe colocou desafios económicos e sociais aos quais não se soube adaptar. O seu Governo foi incapaz de diluir o protagonismo político e financeiro do noroeste pelo resto do país e deixou o antigo território socialista totalmente excluído da distribuição de riqueza. A ira sulista deu azo a nova guerra civil e a uma proclamação de independência, em 1994, revertida ao fim de apenas dois meses com o triunfo incontestável dos exércitos de Saleh.
Nessa altura já a economia do Iémen estava em queda livre, uma realidade que muito se deveu ao apoio assumido pelo Presidente Ali Saleh a Saddam Hussein e à invasão do líder iraquiano ao Kuwait, em 1990. Como medida de represália, a Arábia Saudita – integrante da grande coligação, liderada pelos EUA e mandatada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que desafiou o Iraque na Guerra do Golfo – decidiu deportar mais de um milhão de iemenitas do seu território, decisão que provocou um rombo agudo no fluxo de financiamento do qual dependiam famílias inteiras e que atascou uma economia já de si frágil.
Com a invasão anglo-americana ao Iraque, em 2003, Saleh decidiu afastar-se do seu antigo aliado e assumir uma relação aberta com os EUA. Visitou George W. Bush em Washington e, a troco de milhões de dólares, autorizou o exército norte-americano a abater alegados alvos da Al-Qaeda em território iemenita, confirmando com esse gesto a sua abertura para unir esforços e juntar os trapos com aqueles que lhe podiam dar algo a ganhar.
Queda, regresso e fim
O afastamento de Saleh da Presidência começa a desenhar-se em 2011, após a queda de Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, na sequência dos movimentos populares de contestação que varreram alguns países do norte de África e do Médio Oriente, e que ficaram conhecidos como as Primaveras Árabes. Acusado de corrupção, desvio de fundos e de práticas ditatoriais e com uma produção de petróleo em queda desde 2001, o líder do Iémen enfrentou longos meses de protestos nas ruas de Saná – aos quais respondeu com repressões violentas – protagonizados em grande medida por jovens e estudantes, e apoiados pelos rebeldes hutis que cresciam no norte e pelo movimento independentista que sobrevivia no sul.
Em 2012, e depois de inúmeras tentativas de negociar a sua manutenção no poder, um já debilitado política e fisicamente Ali Abdullah Saleh acabou por se comprometer com o Conselho de Cooperação do Golfo e ceder a Presidência ao seu vice, Abd-Rabbu Mansour Hadi – apoiado por sauditas e norte-americanos -, não sem antes lograr um acordo de imunidade com o seu próprio partido e com isso garantir a impossibilidade de poder ser alvo da justiça no futuro.
A ofensiva militar do hutis – um grupo rebelde afeto à corrente zaidita do Islão xiita – sobre o antigo território da República Árabe do Iémen e a expulsão de Hadi e das suas forças de Saná e da região circundante, em 2014, transportou o país para uma guerra civil sem fim à vista e deu início a uma crise humanitária de proporções catastróficas, mas viabilizou o ressurgimento de Saleh, poucos anos depois do seu afastamento. O ex-Presidente não quis ficar a assistir na bancada à batalha pelo território que liderou durante 33 anos e decidiu juntar-se aos rebeldes que combatem a coligação aliada de Hadi, liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos EUA.
A nova mudança de amigos foi entendida, interna e externamente, como mais um gesto de pragmática conveniência, de um homem que nunca se mostrou disposto a abdicar do papel principal no teatro iemenita. E a relação, já de si assente em alicerces muito frágeis, acabou por ruir na sequência de um anúncio televisivo protagonizado pelo próprio Saleh, no passado sábado. O antigo Presidente responsabilizou os hutis pela guerra, apelou aos seus apoiantes para ignorarem a causa rebelde e mostrou-se aberto a estabelecer um canal de negociações com a Arábia Saudita, para se por fim a uma guerra que já dizimou mais de dez mil pessoas e que deixou milhões sem acesso a água potável e em risco de inanição.
O rebeldes xiitas não perdoaram nova troca de camisolas e na última segunda-feira atacaram a comitiva onde o ‘traidor’ seguia, a caminho de Saná. «Anunciamos a morte do traidor Ali Abdullah Saleh e dos seus apoiantes, depois de ele e dos seus homens terem bloqueado as estradas e matado civis, em clara colaboração com os países inimigos da coligação», justificou o canal de televisão dos rebeldes. O antigo Presidente foi abatido a tiro, aos 75 anos.