Amaldiçoou o dia em que nasceu – e com boas razões, que os desconcertos da fortuna não lhe deram tréguas, como se, desde a primeira hora, o destino se lhe tivesse lançado às canelas, para não mais largar. Como se não bastara a má estrela, não nasceu Camões com atributos de arrancar favores aos grandes: a arte de fazer de conta e assobiar para o lado, uma muito flexível espinha dorsal, pronta a dobrar ao disponível poderoso. Avesso às fórmulas da modéstia e da submissão, deixou, aliás, fama de altivo orgulhoso, reivindicando um estatuto de genialidade própria e o correspondente direito a ser compreendida e apoiada a sublimidade do seu talento pelos poderosos. Regressou da Índia tão ou mais pobre do que quando partira, soldado vencedor e eterno perdedor, a arrastar a vida numa penúria de andrajos.
Nadou para salvar o poema que o ensino simplificado dos nossos dias – a reduzir “Os Lusíadas” a um falhado e minúsculo puzzle de estrofes e esquemas que não encaixam na compreensão de quem se nega a fazer vista grossa – e a indiferença dos leitores modernos, desinteressados dos clássicos, não têm cessado de afundar. Em 1572, viu sair dos prelos da oficina lisboeta de António Gonçalves uma epopeia crivada de gralhas e desacompanhada de prólogo ou texto elogioso como era de uso nas edições da época, ou porque a sua carteira de contactos no meio literário se decalcasse da própria bolsa, ou porque terá preferido apresentar-se assim mesmo, sem atavios que não atrasam nem adiantam, com vaidosa sobriedade. Não o preocupariam, de resto, as questões de imagem, porque entendia talvez que havia coisas mais importantes a fazer. Por exemplo, o registo de tudo quanto manchava a grandeza portuguesa – a ganância, a incompetência, a corrupção –, assumindo a função de acusador, mas também de “experiente conselheiro ou de exigente mestre de cidadania, cuja lição se dirige a príncipes e súbditos, a prelados e leigos a grandes e pequenos”, como sublinhou Aníbal Pinto de Castro. De resto, numa das suas cartas vemo-lo falar com desinibido humor de alguém que, tal como ele, “manqueja de um olho”. Quando, por fim, “Os Lusíadas” triunfaram da indiferença com que inicialmente foram acolhidos, já a vida se lhe gastara.
Celebração épica das grandezas nacionais, exaltação patriótica, sem dúvida. Mas, e para quem se dê ao trabalho de romper a teia de lugares-comuns que compõem a cartilha decorada para uso doméstico e contentinho, “Os Lusíadas” são também um epitáfio da nação que se despenhara das alturas do ideal para aterrar na baixeza cívica. A epopeia maior da língua portuguesa não é só magnimidades, hossanas e hipérboles, cintilações e estridências. É também um lugar de reparo, deceção, queixa dorida, crítica lúcida e desalentada, quando não de frontalidade agressiva, ora porque um rei paga com ingratidão os altos serviços prestados ao país, preferindo premiar “avarentos lisonjeiros”, ora porque Camões sente que o seu canto é pedra atirada à janela da “gente surda e endurecida”. De um lado, a visão otimista e confiante que gera a epopeia, o esplendor de Portugal, se preferirmos; do outro, uma decadência em diferentes níveis e timbres, incapaz de calar uma espécie de epopeia em negativo.
O episódio do Velho do Restelo, esse catálogo de apreensões e maus presságios lançados sobre a empresa das Descobertas e o próprio autor da epopeia, é a única sequência dialeticamente aberta da obra, mas as manifestações antiépicas não ficam pelas famosas oitavas que encerram o canto IV. É extensa a lista de passos em que o poema camoniano dialoga com a sua própria negação. Vitalina Leal de Matos, na excelente introdução a esta edição, que contou com o alto patrocínio da Assembleia da República, chama a atenção para a “natureza complexa” da epopeia. E basta pensar no capitão da armada portuguesa, Vasco da Gama: do mesmo passo, um herói e o contrário disso.
Vale a pena sublinhar que o inculto Vasco da Gama, em quem Camões desanca no final do canto V, não é propriamente o que se possa chamar um modelo de virtude heroica. Longe disso. O homem cansa-se facilmente, deixa-se tentar pela facilidade, cai em ciladas, desespera, fraqueja. Mais: a um passo de concluir o seu objetivo, tem a tentação da morte. Como embaixador de Portugal é uma nódoa, mostrando desconhecer as mais elementares regras da diplomacia, como notou já Hélio Alves. E deixa muito a desejar quando confrontado com os heróis da tradição homérica. O Gama camoniano não dispõe, como Ulisses, de mil artifícios para fazer face aos longos e espinhosos trabalhos que uma viagem por mares desconhecidos envolvia. Dispõe de apenas dois: o primeiro oferece-lho Camões de bandeja, a facúndia, que lhe permite tiradas retóricas com as quais brinda o rei de Melinde; o segundo – o suborno –, que reserva para a fase final da viagem como quem segura o último trunfo, permite-lhe a reparação de um erro que lhe valeu uma noite de cativeiro: ter desembarcado em Calecut. Mas se o primeiro lhe dá uma artificiosa luz, o segundo, acaba por escurecê-lo bastante, já que é o Gama que oferece a Camões – que não esconde ao leitor o modo pouco brilhante como o herói regressa à frota e prepara a saída do porto de Calecut (IX.8) – o pretexto para refletir sobre o poder corruptor do vil metal.
O próprio Camões, acusando o cansaço do seu ofício de poeta épico (exaltar, enaltecer e premiar num tempo decadente) parece pousá-los no horizonte do seu poema. Ei-lo, no canto VII, frustrado, cansado e receoso, inseguro diante da necessidade de ter de continuar caminho: “Olhai que há tanto tempo que, cantando/ O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,/ A Fortuna me traz peregrinando,/ Novos trabalhos vendo e novos danos […] E ainda, Ninfas minhas, não bastava/ Que tamanhas misérias me cercassem,/ Senão que aqueles que eu cantando andava/ Tal prémio de meus versos me tornassem:/ A troco dos descansos que esperava,/ Das capelas de louro que me honrassem/ Trabalhos nunca usados me inventaram,/ Com que em tão duro estado me deitaram”. No final do mesmo canto, é bem visível a acção erosiva do tempo de escrita. O poeta que, já tão perto do fim, tem de “tomar alento, retoma no Canto X a invocação à musa para que lhe devolva “o gosto de escrever, que [vai] perdendo” para assim poder completar o “trabalho extremo”. Cansado, pois, não do canto, mas de quem canta.
Este primeiro volume inclui ainda quatro cartas da autoria segura de Camões, antecedidas de uma cuidada introdução da mesma camonista: uma escrita em Ceuta, duas em Lisboa, anteriores à partida para a Índia, em 1553 e, por fim, uma outra “Mandada da Índia a um amigo”. A imagem que nelas o Épico dá de si mesmo nada deve àquele Camões de golas impecavelmente encanudadas, todo estátua para a posteridade há muito implantada na paisagem portuguesa, genial e intocável, respaldado num plano de grandeza estereotipada, com uma coroa de louros a cheirar a naftalina. O Camões que emerge destas páginas – malandro, pulsante, irónico, galhofeiro, por vezes desfalcado daquela nobreza a que sempre o associam, descanonizado –, está vivo o suficiente para, à distância de mais de quatro séculos, nos acenar com a marca do Humano – as suas aspirações, tantas vezes frustradas, as fraquezas de homem comum, os seus impasses, rumos e desnortes, desalentos, angústias, abismos.