Começamos com o pé esquerdo quando nos deixamos levar pela curiosidade. “Qual era o teu nome antes?”, arriscamos, assim que Isaac nos conta que aos 18 anos começou a terapia hormonal e mudou a identidade no cartão do cidadão. “Isso não interessa. Essa pessoa não sou eu”. E basta mais um ou dois minutos deste jogo de pergunta e respeita para perceber que não, essa pessoa não era o Isaac. “É por isso que odeio que se falem sobre mim como ‘o trans’. Sou muito mais que isso”.
Isaac tem vinte anos, vive em Queluz, namora com a Mariana, estuda fotografia e trabalha numa loja de roupa, tem o corpo tatuado, túneis nas orelhas e um piercing no nariz. E não há nada na postura, na voz grossa ou na barba por fazer que indicie que Isaac nasceu mulher, ainda que nunca se tenha vivido como uma.
“Aos cinco anos virei-me para a minha avó e perguntei-lhe por que é que a minha pila não crescia”, conta Isaac. Apesar da verbalização só se ter dado com essa idade, Isaac nunca vestiu um vestido, não usou cor-de-rosa e não percebia o porquê de, na pré-primária, não poder jogar a bola com os meninos. “Bonecas? Eu nem sabia o que fazer com elas”, explica ao i. E mesmo quando, pouco tempo depois, começam os primeiros beijinhos nas traseiras da escola, nunca percebeu o porquê das meninas da turma não gostarem dele como ele gostava delas.
A avó com quem vivia não se assustou quando Isaac perguntou sobre os genitais que não cresciam, assim como nunca recusou comprar-lhe roupa na secção de menino. “As avós são diferentes. Elas sabem”, garante Isaac. E a de Isaac sabia que o neto precisava de mudar. Explicou-lhe que havia mais pessoas como ele e apenas lhe garantiu que se essa vontade continuasse, falariam novamente quando fosse mais crescido.
Família e amigos Isaac reconhece que tem uma família “muito à frente” e uns amigos para quem o facto de ser transexual tem tanta importância como o facto de ter muitas tatuagens. Exatamente por ter noção desta sorte que decidiu ser protagonista de um documentário no qual conta, na primeira pessoa, como é nascer num corpo com o qual não se identifica.
O “RIP 2 My Youth” faz parte do projeto de mestrado de um grupo de alunos de Audiovisual e Multimédia da Escola Superior de Comunicação Social. Mariana, a namorada, foi a impulsionadora do projeto, mas mesmo não fazendo a cadeira, a ideia avançou, o documentário estreou-se em Novembro e tem sido exibido um pouco por todo o país.
Elizabeth Vieira e João Pico, dois dos responsáveis pelo projeto, recordam o dia da estreia como a prova de que este trabalho fazia falta. “A sala encheu e muita gente ficou cá fora”, lembra Elizabeth. O que os dois não esperavam era ver que todos os que não tiveram lugar, esperaram 50 minutos – o tempo de duração do documentário – na esperança de conseguir entrar para uma segunda sessão. “Tivemos pais a virem ter connosco a agradecer, um rapaz que trouxe com ele sete pessoas da família para verem o filme. Foi incrível”, descreve Elizabeth.
Os dois fazem questão de frisar que este não é o primeiro documentário sobre transexualidade feito em Portugal. “Mas é o primeiro que não se foca no drama, no ‘ai coitadinho, olha o que ele está a passar’, ‘olha o dinheiro que ele já gastou’.Disso não precisamos. Precisamos sim de dar esperança aos que estão agora a começar o processo de transição”, refere Isaac.
A mudança Desde aquela conversa com a avó aos cinco anos, a vontade de mudar não passou. Pelo contrário, ganhou cada vez mais força.
Na adolescência comprava camisolas três números acima, andava de skate e “comia gajas” a toda a hora. “Era o meu refúgio. Como não gostava de mim, encontrava conforto nessas relações esporádicas”, conta.
Essa vida aparentemente normal fazia com que os amigos questionassem o porquê de sujeitar o corpo a uma mudança tão brutal. “Se comia gajas, para quê que precisava de injeções de testoterona?”. Para Isaac, esta pergunta é a prova de que, mesmo na comunidade LGBT, há muita ignorância. “O “L” e o “G” esquecem-se muitas vezes do “T”, brinca.
Isaac aprendeu a ignorar questões como estas e Mariana já sabia o que responder sempre que alguém lhe perguntava ‘Mas como é que vocês fodem?’. O jovem acredita que responder com a mesma pergunta é a melhor forma de dar a entender que lá por ser transexual, os genitais não têm que ser assunto.
Mesmo assim, não deixa de explicar a transição, a quem quer realmente saber como é que é feita. No seu caso, tudo começou com uma consulta no Júlio de Matos, onde é avaliada a condição psicológica. Com o ok nas mãos, começou há dois anos o tratamento com testosterona, na mesma altura em que mudou o nome no cartão do cidadão. “Outra aventura”, refere, “até de maluco e de doente me chamaram no balcão de atendimento da Loja do Cidadão”.
Isaac resume em duas linhas as partes negativas da história e despacha em dois tempos a parte em que se enrolava diariamente em duas faixas de 4,5 metros cada uma para disfarçar o peito.
Com a mastectomia já feita, os planos passam por uma mudança total, feita a seu tempo. Até lá, vive o dia-a-dia como qualquer outro rapaz de vinte anos. Estuda, trabalha e procura uma casa nova para viver com a Mariana, um projeto adiado quando até em Queluz as rendas chegam aos 600 euros.
Casamento e filhos não fazem parte dos planos, ainda que saiba que a Mariana é a única pessoa com quem baixa todas as máscaras. “Toda a gente as tem, mas os transexuais têm em dobro. São muitos os temas que nos fazem ativar um modo de defesa”, garante. Um deles é precisamente quando lhe falam da “sorte que tem” em ter uma namorada. “ Eu tenho muita sorte em ter a Mariana mas não é porque ela me aceita como trans, tenho muita sorte porque ela é uma miúda do caraças. Não posso ter dívidas de gratidão pelo facto das pessoas estarem comigo”.