Eu não sei se algum dos meus leitores passou por aquela situação chata de andar com alguém que não andava consigo. De resto, o verbo «andar» foi inventado exatamente para criar uma certa incerteza, subjetividade, dúvida, inconsistência, ambiguidade. Em última análise, podemos dizer que duas pessoas andam juntas, isto é, atravessam ruas, páram nos semáforos lado a lado, entram em restaurantes uma a seguir à outra se a porta não for suficientemente larga. Muitas vezes não se passa mais do que isto, embora possa dar-se o caso de os dois estarem interessados em andar até a uma cama. E depois andar até à porta da rua. Os ingleses têm uma expressão para este tipo de coisa tanto ou mais ambígua – «We’re seeing each other». Duas pessoas que andam «a ver-se». É uma coisa a ver o que dá.
Este período pode ser exaltante quando as coisas «andam» bem. É chato quando duas pessoas que estão a ver no que dá percebem que afinal não dá nada. A parte mais complexa é quando uma das partes acha que anda de facto com a outra parte, mas esta última não sabe de nada. Não tomou conhecimento. Não percebeu. Julgava que andava mesmo apenas a atravessar passadeiras e portas de restaurante (e a do Lux, mais chata).
Todos nós já passámos por isso.
Há duas formas de reagir: a parte que se enganou faz uma cena e corta relações ou a parte que se enganou faz uma cena e não corta relações. É isto que se está a passar em Portugal.
O governo PS anda com o Bloco de Esquerda e o PCP. Não é uma coligação, é só uma relação que está num patamar um bocado acima do «we’re seeing each other». Porém, nenhuma das partes decidiu dar à relação o peso do compromisso que, vá lá, um namoro firme (ui, que palavra tão reacionária) envolve. O que sabemos é que o Governo PS, o Bloco e o Partido Comunista andam juntos. Se as relações oficiais têm os seus altos e baixos – e a Vanessa que o diga, os seus três casamentos davam uma telenovela de horário nobre – as coisas não oficiais tendem a criar ainda mais complicações. Na verdade, nunca se consegue compreender a fundo a natureza de uma relação não oficial. Mesmo que tenham assinado coisas, como aconteceu entre o PCP e o Governo, o Bloco e o Governo, o partido Os Verdes e o Governo, que tinham nomes tão complexos que ninguém fixou, só o facto de a espécie de aliança parlamentar ter sido feita num local esconso e sem direito a fotos faz-nos logo pensar naquele tipo de relações que de vez em quando as pessoas têm sabendo à partida que se vão arrepender.
O que se está agora a passar entre o Bloco de Esquerda e o PS mostra como isto de ‘andar com’ envolve enormes complexidades. Como não se trata de uma coligação formal, o PS sentiu-se à vontade para mudar de posição sobre o imposto das renováveis – é a versão do desmarcar o jantar para sair com outra mais gira, que acontece tanto quando alguém pensa que ‘anda’ com outro alguém mas depois descobre que afinal a criatura andava com duas pessoas ao mesmo tempo. Também acontece.
É natural que o Bloco de Esquerda tenha sentido as coisas desagradáveis que uma pessoa que julga que anda com outra e depois leva com um tijolo sente. A honra manda insultar o espécime ou, numa versão mais ‘lady’ da coisa, desaparecer sem deixar rasto.
O Bloco insultou o PS porque na realidade ainda gosta suficientemente dele para desaparecer sem deixar rasto. Limitou-se a chamar-lhe os nomes todos. Nos primeiros dias, o PS calou-se, aceitando os insultos. Agora, devolveu-os à bruta e diz que quer é a maioria absoluta. É mais difícil sair de uma relação do que entrar. Para agravar a coisa, ao contrário das pessoas, os partidos não podem fazer ‘ghosting’: desaparecer, bloquear gente no Facebook, não atender chamadas nem responder aos SMS. Os partidos têm que estar todos os dias no Parlamento. É mais ou menos como andar com pessoas no local de trabalho. A Vanessa aconselha a evitá-las, se possível.