O menino salvo das bombas

Em 1944, a catedral de Friburgo sobreviveu quase miraculosamente aos bombardeamentos britânicos. Graças a essa feliz ocorrência, ainda hoje podemos contemplar, no seu contexto original, o altar de Hans Baldung com cenas da vida da Virgem.

Entre as 19h58 e as 20h18 de 27 de novembro de 1944, cerca de três centenas de bombardeiros pesados britânicos Lancaster submeteram Friburgo ao chamado carpet bombing, uma técnica afinada até à perfeição nessa fase tardia da guerra. Nas ruínas de um terço dos edifícios de Friburgo, sob 1700 toneladas de bombas, de um total de cem mil habitantes, pereceram quase três mil e ficaram feridos cerca de outros dez mil.

Estranhamente, na devastação do centro antigo da cidade, a velha catedral resistiu quase intacta. Por essa altura, a pintura que Hans Baldung Grien executara para o altar do coro daquele templo estaria, como tantas outras obras de arte móveis, algures, protegida das bombas. Tais circunstâncias possibilitam-nos hoje admirar a obra no local original para onde Baldung a executou.

Hans Baldung, de alcunha Grien, terá nascido em Gmünd, na Suábia, em 1484 ou no ano seguinte. Faleceu em Estrasburgo em 1545. Talento artístico que se impôs numa família de letrados, Baldung ingressou em 1503 na oficina do grande Albrecht Dürer, em Nuremberga. Sendo o mais talentoso dos discípulos de Dürer, Baldung desenvolveu a sua personalidade artística dentro de uma relação harmoniosa com o seu mestre, o maior pintor da Escola Alemã. Assim, Dürer ter-lhe-á confiado a orientação da sua oficina durante a viagem que realizou a Itália em 1505-1507.

Em 1512, três anos depois de ter estabelecido a sua oficina em Estrasburgo, Baldung instala-se para uma longa temporada em Friburgo. Aqui adquire a cidadania, necessária ao exercício do seu mester de pintor, para executar uma encomenda importante: a pintura para o altar do coro da catedral, objeto da nossa atenção. Em 1517, regressa a Estrasburgo onde se fixará até ao final da sua vida, próspero – chegaria mesmo a ser um dos mais ricos cidadãos – e respeitado – acabaria por tomar assento no Conselho Municipal.

O políptico da catedral de Friburgo encerra alguma complexidade. Assim, a Coroação da Virgem figura no anverso do painel central – note-se que o templo que alberga a pintura é dedicado à Virgem: Münster Unserer Lieben Frau (Catedral de Nossa-Senhora). Nos painéis laterais surgem as imagens de S. Paulo e de S. Pedro rodeados de outros apóstolos. A Crucificação ocupa o reverso do mesmo painel central, flanqueado agora pelas figuras de S. Jerónimo e de S. João Batista, à esquerda, e de S. Lourenço e de S. Jorge (este último, o santo patrono de Friburgo), à direita. Finalmente, Quatro Cenas da Vida da Virgem – a Anunciação, a Visitação, a Natividade e a Fuga para o Egito – rematam o anverso do políptico quando fechado. A predela (friso na parte inferior do retábulo) é esculpida no seu anverso e ostenta no reverso os quatro notáveis associados à encomenda da obra retratados em adoração à Virgem e ao Menino. Baldung decidiu não deixar os seus créditos por mãos alheias e assinou assim a sua obra duas vezes: em monograma (HBg), num cartellino inserido na Crucificação, e no reverso da predela, em inscrição latina mais explícita.

No tempo do Advento e do Natal o políptico apresenta-se em posição fechada, expondo assim aos fiéis as Quatro Cenas da Vida da Virgem (como mostra a imagem). De acordo com a presente quadra, detenhamo-nos com mais atenção na terceira das quatro cenas: a Natividade. Os pequenos anjos, embevecidos, sustentam o Menino num lençol de que emana uma divina luz que resplandece sobre toda a cena. A Virgem, bem terrena, mais parece uma jovem observada nas ruas de Friburgo. A sua frescura é acentuada pelo contraste com a vestustez e rusticidade de S. José. O boi, cujos olhos denotam uma empatia quase humana, é um verdadeiro achado: longe de denunciar a indiferença proverbial da sua espécie, sentimo-lo pressuroso para reconfortar o Menino com o calor da sua respiração. No canto inferior esquerdo do painel, o entrelaçado do vime sugere nos pés e na cabeceira do berço singelos crucifixos. Estes toldam discretamente a alegria da cena pois alertam-nos para a razão última da vinda de Cristo, Salvator Mundi. A saliência da pedra nua, à direita, reforça aquela ideia ao evocar-nos o Gólgota em miniatura. A composição de Hans Baldung é simples mas eficaz.

É um facto que a Escola do Norte tende a ser ofuscada pelo brilho ímpar que emana por esses anos de Itália, em particular de Roma, onde uma divina tríade marcou um ponto cimeiro da Arte Ocidental: Miguel Ângelo, que terminara o teto da Capela Sistina, Rafael, que decorava de frescos as stanze do Vaticano, e Leonardo, que vivia os últimos anos do seu singular e transcendente percurso. 

Mas a riqueza artística da nossa Europa é inesgotável. Tem-se, assim, a esperança de que este apontamento sobre o políptico de Hans Baldung alerte o leitor para uma obra plena de vigor plástico e, no entanto, relativamente desconhecida na pintura de Quinhentos.

Em conclusão, face ao Menino salvo das bombas, cinco séculos passados sobre a sua criação, evoquemos neste Natal de 2017 o cântico entoado pelos anjos aos pastores: «E Paz na Terra aos homens de boa vontade» (Lucas 2:14). Longos anos de vida ao Altar de Hans Baldung na sua velha casa, no centro de Friburgo! 

Jorge Filipe de Almeida

Professor universitário