Quarenta e um anos após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a magna carta política e constitucional do nosso país continua a prever a possibilidade da criação de regiões político-administrativas no território continental.
A par da existência de 308 concelhos, Portugal tem, nos termos da Constituição e da lei, duas regiões autónomas – Madeira e Açores – com a dignidade política, jurídica e administrativa nos termos devidos, com atribuições, competências e órgãos próprios.
Entre as matérias que nas últimas décadas têm merecido mais controvérsia na política nacional está a chamada ‘regionalização do continente’. Matéria que há dezanove anos teve a oportunidade de ser referendada pelos portugueses, com discussão profícua e um debate que ultrapassou fronteiras partidárias e ideológicas.
De entre outras frases que marcaram esse debate, ficou a do primeiro-ministro à época, António Guterres, de que tinha «poder a mais».
Em novembro de 1998 fui um dos muitos portugueses que votaram contra a regionalização do continente português. E empenhei-me na campanha e na discussão, enquanto porta-voz de um dos vários movimentos cívicos contra a regionalização (a Nação Unida, liderada por Paulo Teixeira Pinto).
Como eu, vários portugueses, de várias idades, condições sociais, ideológicas, políticas, do norte, do sul, do litoral e do interior, votaram contra.
Por razões distintas. Mas acumuladas, divergindo não só da criação das regiões administrativas lato sensu mas também do recorte geográfico, do número de regiões, etc.
Passaram-se quase vinte anos. E o que temos neste domínio? Um país mais coeso social e economicamente? Ou menos? Um país mais ou menos centralizado? Temos melhor ou pior qualidade de vida em grandes urbes, como Lisboa e a sua área metropolitana? Temos maior ou menor desperdício de dinheiros públicos no Estado central, na Administração Pública direta, indireta e também periférica?
Qualquer pessoa medianamente bem formada e informada tem de reconhecer que, nesta matéria, o país está pior do que estava há vinte anos, data da realização do referendo à regionalização.
E isso sente-se com base em múltiplos indicadores, não só económicos e sociais. Mesmo os portugueses menos informados sabem, interiorizaram, percecionaram, que hoje temos vários países dentro do país formal e institucional.
O país de Lisboa, o país das grandes urbes, o país dos territórios suburbanos, o país das médias cidades, o país do litoral, o país do interior, norte, centro e sul.
Infelizmente, o ano em curso que terminará nos próximos dias viveu catástrofes e problemas que são exemplos práticos do resultado da desadequação da arquitetura jurídico-administrativa portuguesa às necessidades de Portugal. Bem como da imperiosa necessidade de esta matéria voltar a ser discutida e priorizada, quer na sociedade portuguesa, quer no Estado, ao nível dos seus órgãos de soberania, sobretudo dos que têm relevância no exercício da função política, da função legislativa e da função executiva e administrativa.
Aliás, sejamos coerentes. Nas últimas décadas, praticamente todos os partidos políticos já puseram na gaveta a regionalização.
De bandeira positiva a matéria controversa e diabolizada, já tivemos de tudo. O PSD já foi contra, já foi a favor. Já discutiu e debateu muito. E vice-versa.
De uma coisa estou certo. Como eu – que há quase vinte anos votei contra – hoje são muitos os que consideram que nos próximos anos esta matéria tem de voltar a ser discutida. Sem medos. Sem tabus. E com um único objetivo: a defesa dos superiores interesses de Portugal e dos portugueses.
Com um debate sério. Em que se coloquem argumentos válidos e atuais – e se enfatize o que de essencial se deve pretender, na procura de um país mais coeso económica, social e culturalmente.
Com melhor utilização dos dinheiros públicos, com melhores oportunidades de desenvolvimento sustentável integrado nos atuais territórios de baixa densidade. E também defendendo que cidades como Lisboa tenham direito a melhor qualidade de vida, acabando com o lado negativo do centralismo – responsável, entre outras coisas, pela perda de qualidade de vida, pouca mobilidade, problemas ambientais, insegurança, etc.
Portugal não pode fugir mais a este debate. Que deverá ter consequências. Porque as coisas, nesta matéria, não poderão ficar como estão.
Um partido político como o PSD deve colocar este tema na ordem do dia. Explicando pedagogicamente o que distingue a descentralização, a desconcentração, as regiões administrativas no continente (enquanto autarquias locais), de entre outros conceitos e catalogações técnico-jurídicas – que são muito díspares das das regiões autónomas dos Açores e da Madeira.
Quem é centralista entra nesta discussão demagogicamente, exibindo o papão de que aquilo que está em causa é a criação de muitas regiões autónomas despesistas no continente. Isso é má-fé. Porque não é nada disso que está em causa. Até porque o texto constitucional não o permite. Nestas como noutras matérias, o tempo é dos corajosos e não dos acomodados. Deixemos os corajosos tratarem de uma matéria tão importante para o nosso futuro coletivo.
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