Regresso aos tempos do bacalhau racionado

Na Lisboa do antigamente, as filas não se faziam nos shoppings. Havia quem, às seis da manhã, já esperasse à porta da ‘Manteigaria Silva’ para garantir bacalhau na mesa. Era o tempo em que a ‘Livraria Ferin’ tinha dez pessoas a atender e que nos cabazes da ‘Manuel Tavares’, não faltavam presuntos inteiros.

 

Apanhámos José Martins a levar para dentro da loja uma encomenda de bacalhau que acabou de chegar. «Está muito ocupado?», arriscamos. O funcionário mais antigo da ‘Manteigaria Silva’ pega-nos pela mão e leva-nos até ao balcão. «’Tá a ver aquilo ali? Aquilo ali é que era estar ocupado». O dedo de José aponta para duas fotografias penduradas atrás do balcão, a preto e branco, que apesar de pouco nítidas, mostram as filas que se formavam à porta desta que é uma das mercearias mais antigas da capital.

«Era uma época na qual, quando chegávamos às 9h para abrir a loja, já estava cá gente desde as seis», lembra, «até traziam chá e café para se aquecerem, que o inverno não era como agora». Nem o inverno nem o Natal.

Em Lisboa, como acontece no resto do país, os dias que antecedem o dia 25 são de azáfama para quem gere um comércio. De tal forma que, desde o dia 1 que a ‘Manteigaria Silva’ não fecha. «Venho às 7h30 da manhã e só saio daqui de noite», admite José, ainda que o tom de voz seja tudo menos um lamento. Com 75 anos, são já 44 a trabalhar numa loja que, a dias da consoada, tem uma fila considerável de gente à espera de escolher o melhor bacalhau.

Não conta quantos vende, mas são «às centenas, de certeza» e lembra que, em épocas de racionamento, essa contagem era bem mais fácil de fazer. «Só podíamos vender um bacalhau por pessoa e não havia espaço para grande aldrabice», garante, até porque havia sempre polícia à porta da loja.

Já na ‘Casa Africana’, no Mercado da Ribeira, ninguém nega episódios de autêntico contrabando, quase tão típico desta altura quanto o próprio bacalhau. Joaquim Rodrigues, que começou como funcionário e agora é patrão, lembra-se bem dos tempos em que para conseguir um fardo de bacalhau – o equivalente a 60 quilos – para ter na loja à venda, era obrigado a comprar cem quilos de açúcar. «Era a maneira que o Governo tinha de escoar o que tinha a mais».

Mas para um espaço inicialmente batizado de ‘Loja do Bacalhau’, um fardo era pouco para a fila de clientes que na altura do Natal faziam questão de ter à mesa o melhor que chegava a Lisboa. «A verdade é que um bom comerciante conseguia comprar dois fardos, ainda que pudesse expor apenas um deles», explica Joaquim. Aquele que ficava atrás do balcão era guardado para os clientes especiais, «que já sabiam que só podiam aparecer quando a loja fechasse».

Depois do 25 de Abril, o rácio abrandou e o então patrão de Joaquim decidiu que os retornados seriam um público alvo para o negócio. A loja passou a ser conhecida como ‘Casa Africana’ e ainda hoje, nas prateleiras, Portugal e as colónias convivem de forma equilibrada. É ver o quiabo ao lado do feijão, o azeite de dendê ao pé do óleo Fula e os frutos secos a tentar roubar protagonismo ao bacalhau. Tarefa impossível. «Só do especial, ontem vendi 60 bacalhaus. Deve andar à volta dos 420 quilos», exclama Joaquim.

Nestes dias, a clientela muda. Além de ter gente a vir do norte e até de Espanha só para comprar o seu bacalhau, a loja enche-se de homens. «Parece que nesta altura são eles que fazem questão de vir comprar do melhor para a ceia», refere. É neste momento, quase que num passo que parecia ensaiado para provar que a exceção confirma a regra, entra a D. Alice, vizinha de banca no mercado e cliente há mais de trinta anos. «Arranjas-me três, mas dos bons, daqueles que tu sabes», pede. Joaquim garante que não será este ano que vai falhar na qualidade. «Eu sei que não meu rico filho, é por isso que venho sempre aqui. Aliás, parece que se o bacalhau não for daqui, o Natal nem me sabe ao mesmo», garante, aproveitando para lembrar aquela vez que se deixou levar pelas promoções. «Comprei cinco quilos no Pingo Doce e vi-me aflita para lhe dar vazão. Eu guisei-o, eu fiz pasteis, mas não havia maneira de disfarçar o sabor», garante.

Joaquim encolhe os ombros, até porque histórias destas já se fartou de ouvir. «É que aqui, além de ser de categoria, tem um atendimento personalizado. No hipermercado, quem é que lhe diz que o bacalhau é de primeira? A prateleira?».

Prendas fora do shopping

Como o Natal não se faz só à volta da mesa, este périplo pelas festas do antigamente leva-nos às lojas onde esperávamos encontrar filas de gente à espera para pagar e embrulhar presentes. Mas isso era só se a história valesse tanto como os saldos da vizinhança.

Na ‘Livraria Ferin’, em pleno Chiado, há espaço para ler com calma, escolher o melhor livro e ainda pedir opinião à funcionária que está livre. É bom para quem procura um lugar calmo para fazer compras, mas mau para um negócio que já não é o de outros tempos. «Chegámos a ser dez pessoas a trabalhar nesta altura do ano», explica Celina Basílio. Agora, duas ou até mesmo só uma dão conta do recado.

Há 32 anos a trabalhar numa livraria aberta desde 1840, lembra-se de no dia 24 de dezembro o horário de trabalho se estender até às 20 horas. «A sorte é que deixavam as mulheres sair mais cedo. Alguém tinha que ir cozer o bacalhau», brinca. Esses eram tempos em que chegavam à loja clientes com uma lista de livros para oferecer à família toda. «Agora é um ou dois, com sorte», garante, não só porque pela concorrência das grandes cadeias, mas principalmente porque «as pessoas deixaram de oferecer livros».

Livros e joias

«A juventude prefere ipods e ipads», lamenta Alberto Sampaio, que trabalha na Joalharia do Carmo há 52 anos.

As vendas foram baixando mas agora, tal como há 93 anos, quando a loja abriu, o mês de dezembro continua a equivaler a dois ou três meses em termos de faturação.

Joias e peças de decoração são as duas coisas mais vendidas nesta altura, ainda que bem longe dos tempos em que só conseguia sair para a consoada em cima da hora de jantar. «E o rapaz das entregas ficava até às onze da noite a distribuir as prendas por Lisboa», lembra. 

Mesa farta 

O melhor mesmo é regressar à comida se queremos voltar a fazer subir o espírito natalício, até porque quando o assunto é comer e beber, os lisboetas não olham a preços nem a filas de espera para ter o melhor à mesa. E se falamos de melhor, uma paragem na Confeitaria Nacional é quase obrigatória [não somos nós que dizemos, são os prémios de melhor bolo rei da cidade]. 

A fama justifica um balcão só para a venda de bolo rei, mesmo que poucos saibam que este produto indispensável da consoada só chegou a Portugal graças ao dono desta pastelaria, que trouxe a receita de França e que até hoje se mantém em segredo.

Fábio gere a pastelaria há quatro anos e, por isso, falta-lhe memória de outros tempos. «Mas sei que muitos dos clientes de hoje são os mesmos de há 60 anos», garante, habituado a ver até três gerações juntas a comprar sobremesas típicas da época.

Para dar resposta à procura não contratam mais funcionários, mas os que estão sabem que têm que dar o litro. «Se num dia normal já vendemos às centenas de quilos de bolo-rei, já houve vésperas de Natal em que atingimos as duas toneladas», exclama. 

É neste espírito positivo que seguimos, mesmo quando deixámos o cheiro a bolo quente para trás. 

Meia dúzia de metros ao lado, na ‘Manuel Tavares’, circular pela loja só mesmo entre muitos ‘com-licença’. Numa espécie de hub criado no centro, a equipa de funcionários – que é reforçada nesta altura – atira-se em todas as frentes para da conta dos pedidos. Os sacos de papel já cheios de frutos secos, chocolates e queijo da Serra vão saindo do balcão para serem pagos à saída, onde Clara Ladeira, herdeira do negócio, trata das contas.

Quando chegou hoje de manhã para abrir a loja, já tinha uma fila de gente à espera. «Acho que é este atendimento personalizado que as pessoas sentem falta e as faz regressar cá nestas épocas especiais», refere. O atendimento e os produtos. É que esta é uma casa de referência quando o assunto é vinho do Porto, elemento essencial dos cabazes de outros tempos, que as empresas encomendavam e que até presuntos inteiros tinham. «Mesmo assim não me posso queixar», admite, «há lá melhor coisa que ouvir: ‘Ai Dona Clara, se não vier aqui o meu Natal nem é o mesmo?».