Sempre que queriam transformá-la em heroína, símbolo da luta pela liberdade, dizia que não era nenhum ícone. Chegou mesmo a afirmar: «Não sou nem Margareth Thatcher, nem Madre Teresa», garantia. «Sou uma política», acrescentava.
Só que a sua luta pelo restabelecimento da democracia em Myanmar (a velha Birmânia que os generais da ditadura rebatizaram e para a qual construíram uma capital totalmente nova, um cenário grandioso de grandes avenidas e pouca vida chamado Naypyidaw), que lhe valeu duas detenções, 15 anos de prisão domiciliária e um prémio Nobel da Paz, transformaram-na em heroína estoica pelo bem do seu povo.
Elevada a uma dimensão de quase santidade, que ela não pediu e da qual sempre se distanciou, Aung San Suu Kyi está a ser transformada agora numa quase pária internacional. A perseguição à minoria muçulmana dos rohingya pelos militares birmaneses, que atacaram e queimaram aldeias e vilas, mataram mais de 6700 só num mês e levaram à fuga maciça de 620 mil para o vizinho Bangladesh, está a mostrar uns pés de barro na figura que o mundo habituara a idolatrar.
Bruno Philip, o correspondente do Le Monde para o Sudeste Asiático acaba de publicar um livro em França intitulado Aung San Suu Kyi, l’icône fracassée: la dame de Rangoon face à l’exode des Rohingyas (Aung San Suu Ki, o ícone fracassado: a dama de Rangum face ao êxodo dos Rohyngias) onde fala de uma política com mão de ferro, que privilegia a terra queimada dentro da Liga Nacional pela Democracia (LND) e não deixa emergir um possível sucessor. «A grande tragédia desta história é que o ícone da democracia nega a democracia no interior do seu partido», afirmou o jornalista em entrevista à France Inter.
Uma perspetiva pouco consentânea com a auréola de mártir pela liberdade que a sua luta obstinada pela democratização da Birmânia criou no exterior, a ponto de lhe ter valido o prémio Nobel da Paz em 1991. Aquilo que a crise humanitária dos rohyngias causou foi o estilhaçar dessa cristalização santifica que ela negava, mas o mundo ignorava, talvez por entender que se tratava apenas de modéstia.
Só que nestas coisas da imagem, quanto mais forte a cristalização, mais frágil as suas juntas e a falta de ação da líder birmanesa em defesa da minoria muçulmana deixou à mostra essa fraqueza que rapidamente se transformou na multiplicação de vozes a pedir que lhe fosse retirado o Nobel (levando o comité do Nobel a responder que isso nem sequer fazia sentido) e até à possibilidade de um julgamento internacional.
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, disse esta semana à BBC que a perseguição dos muçulmanos rohingya no maioritariamente budista Myanmar «é um exemplo clássico de limpeza étnica» e que tanto a líder civil do país, Suu Kyi, como o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Aung Min Hlaing, podem vir a ser acusados de genocídio.
«Tendo em conta a dimensão da operação militar, claramente que teria de ser uma decisão tomada ao mais alto nível. E depois há o crime de omissão. Se chega ao teu conhecimento que está a ser cometido [um crime] e não fizeste nada para o impedir, então és passível de ser também culpado por isso», acrescentou o diplomata da ONU.
«Há uma longa história de apartheid em Myanmar», afirmou esta semana, à CNBC, o representante dos rohingya nos Estados Unidos. Yusuf Iqbal explicou que a minoria muçulmana é frequentemente «usada como pretexto para a agressão militar».
Suu Kyi visitou pela primeira vez o estado de Rakhine, onde vive (ou vivia) a maioria dos rohingyas, em novembro. Em outubro tinha anunciado que iria criar uma agência civil, com assistência estrangeira, para levar ajuda aos rohingyas e dar-lhes apoio no seu regresso ao estado de Rakhine, vindos do Bangladesh, para onde fugiram em massa. Isto já depois da primeira vez em que se referiu publicamente ao assunto, em meados de setembro, num discurso incapaz de serenar os ânimos internacionais.
A mensagem – «estou ciente do facto de a atenção mundial estar focada na situação no estado de Rakhine. Como membro responsável da comunidade das nações, Myanmar não teme o escrutínio internacional» – foi ouvida, mas escutou-se mais ambiguidade que esclarecimento ou condenação: «Tem havido alegações e contra-alegações», disse, «temos de garantir que essas alegações estão baseadas em provas sólidas antes de agir».
Não ajuda que, depois da ênfase na abertura do país ao escrutínio internacional, dois jornalistas da Reuters estejam presos há mais de uma semana por «recolherem informação ilegalmente com a intenção de partilhá-la com a imprensa internacional» – segundo a acusação divulgada pelo Ministério da Informação. Uma acusação caricata, tendo em conta que os dois jornalistas trabalham para uma agência de informação estrangeira, o que coloca, no limite, todo o seu trabalho sob a alçada da Justiça. Os jornalistas estavam a trabalhar no estado de Rakhine sobre a questão dos rohyngia quando foram presos.
Desde que o partido de Suu Kyi assumiu o poder, há 20 meses, já foram detidos 29 jornalistas, sendo que cinco deles, incluindo os dois da Reuters, ainda permanecem na cadeia. «Sinto que não estamos a avançar, antes estamos a retroceder no tempo em matéria de liberdade de imprensa e de opinião», contou à Reuters Sonny Swe, o co-fundador e diretor executivo da revista birmanesa Frontier.
Não estranha, portanto, que a Nobel da Paz se veja agora no olho do furacão. Quem idolatra com fervor também é capaz de derrubar com igual intensidade. E se o Comité do Nobel diz que não é possível retirar um prémio e nunca sequer isso foi alguma vez equacionado, os vereadores de Dublin votaram por larga maioria (59 a favor, dois contra) retirar à líder birmanesa o prémio Freedom of the City of Dublin que lhe foi concedido em 1999.