O filme de Natal favorito da Vanessa é o Love Actually, traduzido em português por O Amor Acontece, numa tradução imprecisa. Até porque o amor não acontece no filme – ou não acontece em todos os casos e tem doses suficientes de não-amor.
Acontece que também é um dos meus filmes preferidos no Natal. Nunca Hugh Grant esteve tão perfeito a fazer de Hugh Grant e sabemos todos a quantidade de filmes em que Hugh Grant fez de Hugh Grant – personagem em que é absolutamente distinto. Mas em nenhuma circunstância foi tão perfeito como em Love Actually.
A diferença é que eu vi O Amor Acontece 20 vezes enquanto a Vanessa viu 70. A minha média é 1,5 por ano – uma pelo Natal, o meio quando calha. A Vanessa vê o filme com muito mais frequência e, ao longo da sua vida, já se identificou com várias personagens diferentes, incluindo com Hugh Grant. Talvez todos nós algum dia nos tenhamos identificado com Hugh Grant quando ele faz de Hugh Grant. No meu caso, existem muitas manhãs em que me sinto profundamente Hugh Grant, mas nem é em O Amor Acontece. É o Hugh Grant de Quatro Casamentos e um Funeral – estão a ver aquelas cenas em que ele não ouve o despertador, não acorda a tempo e tem que se despachar em cinco minutos e grita «fuck», «fuck». Eu sei que confessar isto é triste, não abona a meu favor, mas relativizei o problema quando li a autobiografia de Agatha Christie em que ela conta como foi o seu primeiro casamento com o militar Christie, no meio de uma ‘licença’ durante a I Guerra Mundial – foi tudo tão combinado em cima da hora que ela não teve sequer tempo para lavar a cara. Isto está lá escrito mas quem inventou Poirot e miss Marple pode inventar muita coisa, incluindo ir para o seu próprio casamento sem lavar a cara. Os casais que hoje gastam fortunas e tempo a preparar casamentos com um ano de antecedência (incluindo provar a comida que será servida) devem impressionar-se com isto.
Agatha Christie depois divorciou-se, contra a sua vontade, porque o Christie apaixonou-se pela secretária. Agatha insistiu com o marido, até à exaustão, para manter o casamento – embora existisse divórcio legal em Inglaterra, graças a Henrique VIII, não era propriamente bem visto em 1926 e, pior do que isso, Agatha gostava mesmo do sacana do Christie. A seguir, Agatha pifou. Há várias teorias sobre este pifanço, chegou a ser feito um filme – O Mistério de Agatha -, mas na autobiografia não explica grande coisa sobre o assunto. Só diz que ficou num estado mental tão complicado que se lembra de ter ido aos Correios e não conseguir sequer escrever a sua assinatura.
Não foi assim que ficou Emma Thompson quando descobre, em Love Actually, que o marido andava com a secretária, a quem tinha comprado uma joia (ao ‘joalheiro’ Rowan Atkinson, numa das cenas mais delirantes do filme) enquanto a ela ofereceu um CD. De Joni Mitchell, mas um CD. Thompson disfarça o desconsolo, dá-se o direito de chorar cinco minutos, põe logo a seguir boa cara para levar os miúdos à festa de Natal. O final é equívoco. Eu sempre achei que Thompson deixaria o marido mas há dois anos a mulher de um dos argumentistas revelou ao mundo (ou seja, ao Twitter) que «eles ficam juntos, mas nunca voltarão a ser felizes como foram antes».
O esplendor de Love Actually é que é um filme de Natal cheio de Scrooges e Grinchs. Está cheio de pessoas que odeiam o Natal, como a personagem de Colin Firth, que depois de encontrar a mulher na cama com um dos amigos, foge da família que aparentemente o odeia. Mas há redenção. Quilos de redenção. E qualquer pessoa, até a Vanessa, precisa de uns bocadinhos de redenção.