Um western puro-sangue, “Godless” mostra-se exuberante dentro do seu género, sem contornar qualquer dos clichés, antes investindo sobre eles, com evidente regozijo. Estreada na Netflix há algumas semanas, não foi preciso muito para arrastar pelo chão e meter alguns furos no ceticismo daqueles de nós que tomavam o western como uma relíquia do cinema de antanho, uma velha e estafada mitologia americana que dificilmente saberia enquadrar nos seus modelos clássicos um comentário acutilante sobre o mundo contemporâneo.
A série de sete episódios, criada, escrita e realizada por Scott Frank (“Get Shorty”, “Minority Report”) tornou-se num dos acontecimentos televisivos do ano, não apenas por levantar a cancela e dar um novo horizonte a este género em que os estúdios de cinema hoje se mostram algo reticentes em apostar, mas por dominar de tal modo o arquétipo que consegue entretecer nele novos ângulos, e ser extraordinariamente subversivo sem descaracterizar aqueles traços que o ancoram entre os clássicos, fazendo desta série uma homenagem e, simultaneamente, soprando nova vida na um tanto ressequida carcaça.
Ao invés de pôr o sangue a ferver numa latinha, levando-nos a ver tudo de seguida, cada um dos episódios cobre a sua rua, demoram-se, exigem uma certa autonomia. Estendem-se por mais de uma hora, e o último está em linha com o tempo de duração de uma longa metragem, com pouco menos de hora e meia. No fim, é curioso saber que Frank andava há uma década a tentar arranjar financiamento para o que, originalmente, foi pensado como um filme. O que não se perdeu foi a ambição cinematográfica, os soberbos planos com molduras de barras pretas que parecem esticar os desfiladeiros, os horizontes ilimitados com céus azuis por cima e extensões de terra inóspita que nos fazem suar e dão moleza fazendo esquecer o inverno lá fora.
Atenta às tendências que vão ditando as modas no que toca a sensibilidades sociais, a Netflix promoveu a série como se se tratasse de um “western feminista”. Era treta, felizmente. “Godless” conta, no entanto, no seu centro com o povoado de La Belle, no New Mexico, que espelha eventos trágicos inscritos na história de um sem número de aldeias mineiras. Foram, de resto, as descrições históricas desses acidentes em minas, que deixaram alguns povoados de fronteira sem homens de um dia para o outro, que inspiraram Scott Frank ao escrever o guião do filme. Quando chegamos a La Belle, passaram-se dois anos sobre o fatídico dia em que 83 homens morreram na mina. Nestes casos, ou as mulheres acabavam por dispersar, ou, como acontece neste povoado, tomavam as rédeas do seu destino e uniam-se para se garantirem um futuro.
Se há toda uma revisão dos papéis tipicamente atribuídos às mulheres nos westerns, essa é apenas uma das linhas que atravessam uma série que, sem abrir mão do fascínio perante a sua corja de marginais com um talento para cuspir frases afiadas à faca, as pérolas de sabedoria que se arrancam à concha de uma vida dura, esse zen do oeste que fazia dos encantadores de cavalos uma espécie de magos, e há os assaltos a comboios, heróis com ar pesaroso e tiques ruminantes, como filósofos dos descampados cuja obra acaba resumida nuns quantos epitáfios, xerifes emocionalmente estropiados mas que não desistem de uma dose, por muito módica que seja, de justiça… Sem abrir mão de tudo isso e das fabulosas guerras campais ou do duelo final em que o bem e o mal acertam contas, o aspeto mais revolucionário desta série é a forma como se torna um ensaio que aprofunda, interroga e, por vezes, vira do avesso, os motivos sobre os quais se fundou a mitologia do velho oeste, e desta vez já não ficamos tão certos sobre os antigos valores que terão feito a grandeza da América. Às tantas, a ideia de voltar a um passado mítico em que aquele país se tornou grande, e se forjaram os seus valores, conquistando terreno às regiões selvagens e aos nativos, já não parece mais do que uma promessa de retomar a crueldade e a barbárie inconsequente de um período de incertezas tão grandes que Deus se torna uma fantasia demasiado improvável, em que até nos vemos a dar a vida por dá cá aquela palha porque, no fim de contas, a vida não merecia ser guardada como um bem assim tão precioso ou interessante, e a diferença entre viver ou morrer era dirimida mais pelo instinto de sobrevivência do que por qualquer outra ordem de valores.