Os dias passaram neste Ano Novo que nos vai deixando velhos.
Dia a dia a dia. A tal ponto que, de repente, nos vemos no dia do Benfica-Sporting que pode trazer algo de verdadeiramente novo a este campeonato, apesar de tudo, tranquibérnias à mistura, ainda com três candidatos, se bem que paire no ar que se os encarnados se deixarem bater pelos leões na Luz ficarão muito violentamente longe do sonhado penta.
Para já proponho-vos uma viagem no tempo.
Vamos até 1910.
Primórdios dos dérbis. A cada jogo a rivalidade subia na escala de Richter. Como manda a escala: um número acima corresponde ao dobro do anterior.
No dia 27 de fevereiro desse ano de 1910, o Sporting sofre uma tremenda humilhação às mãos do seu inimigo preferido. Coisas que acontecem nas melhores famílias, ainda há pouco recordei aqui uma situação inversa.
No Sítio das Mouras, as primeiras categorias são derrotadas por 4-0, a maior diferença de sempre até então em jogos entre os dois rivais. Em terceiras categorias, a vitória encarnada é ainda mais gorda: 5-0. Era terrível para o leão!
Os jornais da época davam por si a somar as parcelas, obtendo o total, e imagine-se o impacto destrutivo que tal resultado provocava nas hostes do Lumiar.
E assim se acrescentou mais um tijolo de animosidade ao edifício crescente de tão grande rivalidade. É esse o ritmo do Universo. É esse o ritmo dos Benfica-Sporting, ao fim ao cabo o grande confronto do futebol em Portugal. Quer se queira ou não.
História. Este desafio de 1910 foi histórico, mas histórico. Histórico como poucos nestes mais de cem anos de dérbis.
Querem, naturalmente, os leitores saber porquê. Vão sabê-lo já, já! A resposta é simples: pela primeira vez no futebol português os espetadores pagaram bilhete.
De facto, foram vendidos bilhetes a 120 réis, algo de inédito entre nós, mas que se propagaria com a rapidez de todas as ideias financeiramente bem urdidas.
Embora houvesse, como seria de esperar, vozes discordantes. Como a deste curioso editorial do Diário de Notícias de dia 1 de Março: “Entradas pagas?! Oh! Oh! Agora fia mais fino. Já o senhor Manuel Ceguinho, o Chico da Rita e outros mais assíduos frequentadores da tasca e dos desafios não poderão ir manifestar-se com os seus “esfola-me esse maroto”, “mata-me esse pinoca”, e mais vocábulos da agenda “footballística”, pois para isso têm de pagar 120 réis, o que não está escrito no seu orçamento”.
A peça vinha assinada sob o pseudónio de Má Língua, atribuído a um grupo de cronistas da época.
“Cenas pugilísticas ”. Pagou-se, portanto, mas os pagantes, chamassem-se eles Chico da Rita ou Manuel Ceguinho, tiveram espetáculo completo, embora se este último tivesse uma alcunha que representasse a verdade, não aproveitasse grandemente o que a seguir se passou.
A coisa piou fino!
A coisa piou finíssimo!!!
Voltemos às quatro linhas. É lá que verdadeiramente os acontecimentos se vivem. Se durante a primeira parte o embate foi equilibrado, à medida que os minutos foram passando os jogadores do Sporting desmoralizaram por completo. Um jornalista do Tiro & Sport – curiosíssima publicação – chegaria a escrever que a equipa verde e branca mais parecia um “team” de veteranos. Aliás o Tiro & Sport fez uma reportagem dilatada sobre o confronto e não perdeu pitada do que se desenrolou nesse dia de 1910, que teve, como já vimos, dois dérbis consecutivos, com primeiros e terceiros “teams”, ou categorias, como se dizia.
O Sporting tinha fama de praticar um futebol vistoso e agradável. A imprensa da época não hesitava em considerar que, mesmo nas derrotas mais pesadas, os leões se assumiam como o conjunto que melhor jogo coletivo praticava.
Não foi isso que aconteceu nesse dia 27 de fevereiro de 1910.
A perder por 1-0, Augusto Freitas, “keeper” sportinguista, perdeu também a cabeça. Diz quem lá esteve: “A violência é sempre perigosa, até pela réplica que provoca. E entre os jogadores que a tal respeito se destacaram, foi apontado o guarda-redes leonino que se desforçou com jogadas irregulares de dois tentos que não pôde evitar, sendo castigado depois pela Direcção da Liga por jogo violento”.
Do boletim do árbitro do encontro, Mr. Frood, do Carcavellos, consta a informação de se terem registado “cenas pugilísticas” na segunda parte, retirando dois jogadores de campo, um de cada grupo.
Os responsáveis pelo Sporting tiveram dificuldade em aceitar os castigos impostos à posteriori a jogadores do seu clube. Reagiram de forma brusca e desbocram-se. Claro que, comparado com os dias de hoje, era um desbocamento civilizado. Nada de comparações infelizes.
O fel de irmãos voltava a entranhar-se. Mais ácido ainda porque nesse ano o Benfica conquistava, pela primeira vez, o título de campeão de Lisboa dando uma machadada final na velha supremacia inglesa.
A história dos “dérbis” ia ganhando episódios únicos. Tornava-se, a pouco e pouco, a mais frutuosa rivalidade jamais vista em Portugal.