Guida Maria. Para todos os monólogos

Para todas as vidas que dão 60 anos de carreira. Morreu a atriz de “O Milagre de Anne Sullivan”, “A Promessa” de António de Macedo e que trouxe pela primeira vez a Portugal “Os Monólogos da Vagina”, de Eve Ensler

“A primeira vez que fui ao teatro na minha vida foi para ver ‘O Milagre de Ann Sullivan’, com Guida Maria no papel de Helen Keller, foi no Teatro García de Resende, em Évora”, recordava ontem o ministro da Cultura, que no Facebook acrescentava: “Ela tinha a mesma idade que eu: nessa altura 11, 12 anos? Achei-a lindíssima, admirei alguém da minha idade a ousar atuar num palco e foi a minha primeira emoção com o teatro, confundida desde o início com aquela linda menina cega a acordar para o mundo. Tão bonita… Nunca mais a encontrei. Agora não voltarei a encontrá-la.” 

Era com esta peça com encenação (e tradução) de Luís de Sttau Monteiro que em 1962 Guida Maria chamava pela primeira vez a atenção da crítica. Tinha apenas 12 anos e o papel era o de uma menina cega, surda e muda. Papel para o qual estavam à procura de um rapaz que não encontravam, contou a própria em entrevistas que deu ao longo da vida, e para o qual o seu pai – também ator, Luís Cerqueira – acabou por a levar. E espetáculos seguiram-se 40, a esse que não tinha sido já o primeiro. A sua estreia nos palcos tinha sido aos 7 anos, em “Fogo de Vista”, com Ramada Curto, para uma carreira que, entre mais de 40 peças, atravessaria seis décadas de teatro – e várias vidas. Guida Maria, essa atriz que seria a responsável pela primeira viagem de “Os Monólogos da Vagina”, de Eve Ensler, de Nova Iorque para Portugal, não resistiu a um cancro no pâncreas ao qual sucumbiu ontem, aos 67 anos. 

Esse monólogo que se tornaria num dos maiores marcos da sua carreira construía-se em torno de entrevistas feitas a mais de 200 mulheres sobre as suas vaginas, a atriz lia e interpretava, ao longo de 90 minutos, um conjunto de situações, reais e ficcionadas, que retratavam a mulher na sua vida íntima e social. Estreado no outono de 2001 no Casino Estoril, com encenação de Celso Cleto, a seu convite, foi visto quase por 20 mil pessoas. E a esse texto regressaria a atriz duas vezes ainda: a primeira em 2002, no Teatro Villaret, e uma outra em 2009, dessa já dividindo o palco com Ana Brito e Cunha e São José Correia, no Casino Lisboa, em 2009. 

Nesta última fase da sua carreira que veio depois da extinção em 1998 da Companhia Residente do Teatro Nacional D. Maria II, onde trabalhou como atriz entre 1978 e esse ano, Guida Maria  “não foi fazendo menos”, notou ao i o António Pires, encenador e amigo de longa data que ontem comunicou à imprensa a morte da atriz. “Foi fazendo as coisas que quis. Depois do Teatro Nacional, quis fazer as coisas dela. Eram espetáculos próprios, com produção dela, textos que ela tinha vontade de fazer. Era uma pessoa muito independente, muito forte,  com muitas convicções, e que tinha coisas que queria dizer.” E as escolhas dos textos vinham da sua personalidade, recorda o encenador que Guida Maria foi chamando para trabalhar consigo em várias peças. Como “Zelda”, em torno da história da escritora, pintora e bailarina que era a mulher de F. Scott Fitzgerald. “Eram textos que tinham personagens femininas muito fortes, muito afirmativas.” 

Todos a recordam assim. Até Marcelo Rebelo de Sousa, na declaração ontem publicada na página da Presidência, em que sublinhava a importância do seu “estilo frontal”, que ostentava nas suas entrevistas. Numa que concedeu à revista “Sábado”, contava como foi mãe pela primeira vez aos 16 contra a vontade do pai, que tentou convencê-la a interromper a gravidez. “Quando o meu pai anunciou que íamos a Lisboa, disse-lhe: ‘Se eu morrer, há uma carta que segue para a polícia’.” E assim teve o seu primeiro filho, a quem, na mesma entrevista, conta ter ensinado a dizer “puta” antes de “mãe” para que respondesse às senhoras que lhe lançavam olhares reprovadores quando o passeava no carrinho. 

A Promessa No teatro, o percurso de Guida Maria foi longo, mas a atriz não escolheu apenas esse. Ainda na década de 1970, só com António de Macedo, fez três filmes. Primeiro “A Promessa”, em 1972, que em Cannes competiu pela Palma de Ouro e que lhe valeu  que lhe valeu uma referenciação na PIDE pela presença num festival de cinema jugoslavo, e depois  “O Princípio da Sabedoria” (1975) e “A Bicha de Sete Cabeças” (1978). Depois disso, os papéis em cinema foram-se multiplicando por filmes como “O Barão de Altamira” (1986), de Artur Semedo, “O Vestido Cor de Fogo” (1986), de Lauro António, “Os Emissários de Khalom” (1988) e “Serenidade” (1989), de Rosa Coutinho Cabral, ou “No Dia dos Meus Anos” (1992), de João Botelho.

Tudo isto durante aqueles anos em que trabalhou quase ininterruptamente no Teatro Nacional D. Maria II – com uma pausa em 1980 para um regresso ao estudo, dessa vez com uma bolsa para a American Academy of Dramatic Art, em Nova Iorque. Período em que, contou na mesma entrevista à “Sábado”, trabalhou no que foi preciso para se sustentar. “Na galeria de arte de uma portuguesa, numa loja de chineses, fui mulher-a-dias de um judeu que me fez a vida negra. Um dia chateei-me e esvaziei-lhe a cama de água. Deixei-lhe uma nota a dizer: ‘Agora faça-a você.’ Ele devia ter umas grandes festas no quarto. Tinha um espelho no tecto e uma máquina de filmar apontada à cama.”

Nesses 20 anos de D. Maria, couberam textos como  “Auto da Geração Humana”, “O Alfageme de Santarém”, “As Alegres Comadres de Windsor”, “A Bisbilhoteira”, “A Casa de Bernarda Alba”, “Romance de Lobos ou Bodas de Fígaro”, “Shirley Valentine”, criação sua já na Sala Estúdio, e muitos outros. E na sua carreira caberia ainda a televisão, onde se estreou em 1981 com “Uma Cidade Como a Nossa” – e quanta. Integrou os elencos de “Quem Manda Sou Eu” (1990), “Nico D’Obra” (1993), “Na Paz dos Anjos” (1994), “Nós os Ricos” (1996), “Filhos do Vento” (1996) ou “Esquadra de Polícia” (1998), além de telenovelas como “Olhos de Água”, “Tudo por Amor” ou “Baía das Mulheres”, da TVI, onde teve o seu último papel em 2016, em “A Única Mulher”.