Jay Fai é tailandesa, tem 72 anos e é conhecida por Tia Fai. Pode ser encontrada todos os dias atrás dos vários woks que, há mais de quarenta anos, mantém acesos num restaurante de rua em Banguecoque, no número 327 da rua Mahachaim, na parte antiga da capital: o Raan Jay Fai. Usa uma espécie de óculos de ski que já se tornaram na sua imagem de marca para se proteger dos salpicos escaldantes, descreve o The Times. E está rodeada de restaurantes caros que não lhe tiram os clientes, que todos os dias se alinham, pacientemente, à espera da sua comida: khai jeaw pow (omelete de caranguejo), poo phad phong karee (caranguejo frito com caril amarelo) ou phad kee mao talai (noodles com marisco, a que Jai chamou de drunken noodles ) contam-se entre as especialidades.
Na verdade, é até o contrário: foi o Raan Jay Fai quem desviou as atenções dos inspetores responsáveis pela atribuição das estrelas do guia Michelin dos restaurantes caros que o rodeiam e que, em novembro do ano passado, conseguiu alcançar o que é, para milhares de chefs, apenas um sonho: recebeu uma estrela. Um Olimpo que Jay Fai não almejava. Naquele pequeno restaurante todo aberto para a rua, as estrelas que Jay Fai conhecia eram só mesmo as do céu – e, por ela, bastavam. Tanto que nem queria sequer fechar o restaurante por um dia para se deslocar a Hong Kong e receber o prémio. Foi a filha que a convenceu e teve o trabalho de explicar à mãe que esta não estava a ser convidada para cozinhar no evento, lembrou na semana passada o Diário de Notícias, citando o britânico The Guardian. Ao regressar a Banguecoque, foi confrontada com uma inspeção do fisco. «Se continuarem a pressionar-me, devolvo a estrela», ameaçou rapidamente.
No Trip Advisor, a rede em que os comensais avaliam os restaurantes, o Raan Jay Fai, curiosamente, não atinge a pontuação máxima – a escala vai de um a cinco, sendo cinco o melhor. Os utilizadores partilharam muitas imagens, principalmente da comida, mas também do espaço. Mostram um típico restaurante oriental de rua, com ventoinhas e toldos avermelhados, mesas metálicas e cadeiras de plástico. Na lista de comentários, contudo, as opiniões divergem, embora as críticas depreciativas não se refiram particularmente à qualidade da comida, mas antes aos «preços excessivos». Um cliente escreve, por exemplo, que pagou 40 dólares (cerca de 33 euros) por dois pratos e uma garrafa de água.
A estrela Michelin de Jay Fai trouxe-lhe reconhecimento à escala mundial, mas a cozinheira já era famosa no seu país e o seu restaurante era já ponto de paragem de outro tipo de estrelas internacionais, como Martha Stewart. A celebridade norte-americana, conhecida pelos seus programas culinários, foi uma das que se rendeu à septuagenária, reconhecendo-lhe um estilo de cozinha único. «É a melhor cozinheira da Tailândia», afirmou ainda antes de serem conhecidos os resultados do Guia Michelin de 2018.
Um mercado em mudança?
O guia Michelin, consensualmente tido como o mais reputado, construiu em seu redor uma aura de excelência. E esse estatuto é associado ao fine dinning, ou seja, a comida completa-se muitas vezes com porcelanas impecáveis, faqueiros de prata, copos de cristal de titânio, cartas de vinho irrepreensíveis e serviços eficazes, atenciosos e simpáticos.
No restaurante de Jai Fay não há nada disto. Há porções grandes, pauzinhos, toalhas de plástico, grandes tempos de espera. E comida da boa, admitem até os críticos dos preços.
A história desta rainha da street food, como lhe chamou o The Guardian, é inusitada. Mas não é a primeira vez que o guia dá estrelas a espaços semelhantes. A primeira que as estrelas chegaram à rua foi em 2010, quando um restaurante de dim sums em Hong Kong recebeu uma estrela. No ano passado, uma banca do mercado Smith Street’s Chinatyown, em Singapura especializada num prato de galinha e arroz também foi distinguida com a mesma menção.
Uma tendência que, para já, parece reservada ao lado oriental do globo – que, aliás, tem uma tradição longuíssima de street food. Um rápido olhar pelos restaurantes portugueses ‘estrelados’ no ano passado é suficiente para confirmar que, por cá, as estrelas continuam a ser entregues a espaços que se identificam mais facilmente com o que supomos ser o ‘cânone’ Michelin. 2017 foi um ano simpático para os restaurantes portugueses. Não houve perdas de estrelas atribuídas nos anos anteriores e houve dois novos restaurantes a receber uma estrela: o Vista, em Portimão, do chef João Oliveira e o Gusto, em Almancil, do alemão Heinz Beck e do italiano Daniele Pirillo. No total, há 18 restaurantes do país com uma estrela – ou seja, estabelecimentos em que os inspetores consideram que «compensa parar» e cinco com duas estrelas(«cozinha excelente, vale a pena o desvio»): o Belcanto, em Lisboa, de José Avillez, o Il Gallo d’Oro, no Funchal, sob os comandos de Benoît Sinthon; o Ocean, em Alporchinhos, dirigido por Hans Neuner; o The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, de Ricardo Costa e o Vila Joya, em Albufeira, liderado por Dieter Koschina. As três estrelas – o patamar máximo atribuído pelos críticos, traduzido em «cozinha de nível excecional, que justifica a viagem» ainda não foram atribuídas a nenhum restaurante português.
Quais são, então, os critérios seguidos pelos inspetores na hora de construir o firmamento do guia mais conhecido do mundo?
Era uma vez, em França…
Quem, para lá dos infindáveis guias e aplicações, tem a fortuna de ter um amigo motorista constantemente na estrada sabe que não há melhor fonte na hora de escolher um restaurante. E foi exatamente por aí que começou este caminho. Em 1900, durante a exposição Universal em Paris, que os irmãos Albert e Édouard Michelin resolveram lançar o Guide Rouge, um livrinho vermelho com indicações sobre os melhores locais para quem andava na estrada e, à época, precisava de encontrar não só restaurantes como também hotéis. A ideia tinha um propósito bem definido – fidelizar clientes para o negócio que tinham lançado 11 anos antes – a Compagnie Générale des Établissements Michelin, especializada em pneus. Com o tempo, as críticas sobre os hotéis separam-se dos restaurantes e as recomendações foram-se espalhando pelo mundo – por exemplo, só chegou aos EUA em 2006. O sistema de estrelas tornou-se no que hoje conhecemos em 1931 e o Guia construiu uma reputação (quase) à prova de bala.
Todas as edições anuais continuam a ser feitas com uma premissa à mistura: sigilo. A tiragem do guia, por exemplo, não é divulgada. E não se sabe quem são os inspetores – diz-se que há entre 75 e 80 espalhados pelo mundo, um número substancialmente baixo se tivermos em conta os milhares de potenciais candidatos.
Em 2015, uma inspetora falou à revista Variety Fair sob anonimato – e com a permissão de Michael Ellis, diretor internacional dos guias Michelin – e fez algumas revelações. Por exemplo, explicou que os novos inspetores – que «vêm de famílias dedicadas à comida» – são treinados na casa-mãe, em França. «Dependendo das línguas que falam, depois podem ser enviados para outro país europeu e treinar lá com um inspetor», contou. Estão constantemente na estrada: em média, pedem duas refeições em restaurantes durante a maior parte dos cinco dias da semana e folgam aos fins de semana – pelo menos 200 refeições por ano. Durante as provas, nunca tiram notas, mas nos seus relatórios – formulários específicos fornecidos pela própria Michelin – precisam de descrever todos os momentos, desde a marcação da refeição até que saem do restaurante. E precisam de ter «personalidades independentes». «É preciso ser um pouco solitário para se estar confortável a comer sozinho. Na maior parte das vezes, penso que os inspetores vivem em perpétuo estado de paranoia. É esse o trabalho: [pertencer a uma espécie de] C.I.A. mas com comida melhor». E, segundo um artigo publicado em 2008 no The Times, fazem regularmente check ups de saúde, especialmente para controlar o colesterol, teste a que têm que se submeter duas vezes por ano.
Pascal Remy, antigo inspetor que abandonou a equipa em 2004 em litígio com os responsáveis pelo Guia após 16 anos de serviço, afirmou ao New York Times que a ideia de cada restaurante ser inspecionado pelo menos uma vez por ano é «um mito». Segundo Remy, naquela altura, em França, havia apenas cinco inspetores a tempo inteiro para visitar 4000 restaurantes – um trabalho para o qual precisariam de, pelo menos, 24 meses.
A pressão das estrelas que não se querem cadentes
Segundo a inspetora que falou com a Vanity Fair, os inspetores não gostam de retirar estrelas e não o fazem de ânimo leve. E, se os critérios não são conhecidos, como define o significado das estrelas? «Uma experiência num três estrelas tem que ser quase perfeita. Tem que ter algo de memorável. A esse nível, tem que ser uma refeição que nunca mais se vai esquecer», definiu.
Ter três estrelas Michelin exige, então, trabalho árduo. E consistência. É uma recompensa que traz, obviamente, mais-valias que não se ficam pelo prestígio e que se traduzem imediatamente no negócio: estima-se que após receber uma estrela, a clientela aumenta cerca de 40% e, à boleia do sucesso, muitos são os chefs que aproveitam para aumentar o preço.
Mas conseguir manter as três estrelas no Guide Rouge tornou-se também numa espécie de maldição que já fez vítimas pelo caminho. Em 2003, o chef Bernard Loiseau suicidou-se aos 52 anos perante a ideia de perder as três estrelas do seu La Côte d’Or, uma hipótese que começara a circular na imprensa. No início de 2016, o chef Benoît Violier acabou com a sua vida aos 44 anos: também tinha três estrelas, dirigia o restaurante do Hotel de Ville, em Crisser, e tinha sido considerado pela revista La Liste o melhor chef do mundo.
Há dias, Jérôme Brochot anunciou que iria entregar a sua estrela Michelin conquistada no restaurante Le France, em Montceau, por não ter clientes suficientes para manter os padrões elevados que lhe valeram o prémio. E, em setembro do ano passado, o chef Sébastien Bras pediu ao Guia para que lhe fossem retiradas as três estrelas do Le Suquet, em Laguiole (França), para continuar o seu caminho «de forma serena», explicou ao Observador. Em 2005, Alain Senderens, um dos mais prestigiados chefs franceses, tinha sido o primeiro a abdicar das suas estrelas para se dedicar a um pequeno restaurante.
Em Banguecoque, e a outro nível, Jay Fai sofreu logo, com a tal visita do fisco, uma pressão imediata. Acabou por não devolver a distinção com a qual nunca sonhou – até porque, assegura, para ela vai continuar tudo igual. Mas, pelo menos, tem um reconhecimento que diz ser «o prémio de uma vida». Ter vindo da Michelin foi, para a tailandesa, apenas um acaso das rodas da vida. Os prismas são uma coisa muito curiosa. E, mesmo sem critérios à vista, concordemos que parece, cada vez mais, que as escolhas do Guia buscam, no final das faixas de rodagem, uma coisa simples: comida que se quer inovadora, excitante ou tradicional – desde que deliciosa.