Desde 1952, e já contando com a edição deste ano, a Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood já distinguiu 65 personalidades com o prestigiado prémio Cecil B. DeMille, entregue tradicionalmente na cerimónia dos Globos de Ouro. Dessas 65 pessoas, 15 eram mulheres. Entre as 15 mulheres, uma é de raça negra: Oprah Winfrey, apresentadora, atriz nomeada para um Óscar, empresária, opinion maker, crítica literária, filantropa, dona de um canal televisivo e de duas revistas – a lista não finda nestas ocupações. E uma das vozes mais fortes dos Estados Unidos das últimas décadas – que, segundo a CNN, pode mesmo vir a candidatar-se à presidência norte-americana.
Após ter recebido o prémio durante a última gala dos Globos de Ouro, no Beverly Hilton Hotel, em Los Angeles, que decorreu (em Portugal) durante a madrugada de domingo, Oprah foi ovacionada por uma plateia de luxo. E ter sido a primeira mulher negra a receber a distinção foi, obviamente, um dos pontos centrais do seu discurso que, além da questão racional, se centrou no assédio sexual no meio – e na sociedade – por parte de “homens brutalmente poderosos”, como lhes chamou. Palavras centradas no racismo e no feminismo: publicamos, na página ao lado, o discurso que proferiu na íntegra.
Mas não foi a primeira vez que Oprah foi a primeira. Foi a primeira mulher negra a ter um talkshow televisivo – o Oprah Winfrey Show – transmitido em todo o país, o programa com mais audiência de sempre da televisão norte-americana. Emitido durante 25 anos, o programa foi vencedor de dezenas de prémios, entre os quais vários Emmys. E Oprah quebrou ainda a barreira do dinheiro: foi a primeira mulher negra a ser incluída na lista dos mais ricos da “Forbes”, em 2003.
O Globo de Ouro Cecil B. DeMille, atribuído pela Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood (HFPA na sigla original) , é um prestigiado prémio de carreira que Oprah pode juntar agora ao seu já extenso palmarés. O prémio distingue os homenageados por “contribuições extraordinárias no mundo do entretenimento”, lê-se no site oficial da HFPA. O primeiro prémio foi atribuído pela primeira vez em 1952 ao realizador Cecil B. DeMille, um dos “pioneiros” de Hollywood, que aceitou “graciosamente” emprestar o nome à distinção. No ano passado, o prémio foi entregue a Meryl Streep, uma das atrizes mais premiadas de sempre, que usou o momento para criticar o presidente Donald Trump e celebrar os estrangeiros residentes nos EUA.
Aqui fica o seu discurso na íntegra:
“Em 1964, era eu uma menina sentada no chão de linóleo da casa da minha mãe, em Milwaukee, quando vi Anne Bancroft apresentar o Óscar de Melhor Ator, na 36.a edição do prémio. Ela abriu o envelope e disse cinco palavras que, literalmente, fizeram história: “O vencedor é Sidney Poitier.” E o homem mais elegante que eu já tinha visto subiu ao palco. Tinha uma gravata branca e a sua pele era negra – e estava a ser celebrado pelo público. Nunca tinha visto um homem negro ser celebrado daquela forma.
Tentei muitas, muitas vezes explicar o que aquele momento significou para uma menina, para uma criança que estava a ver a cerimónia enquanto a mãe chegava a casa, cansada até aos ossos de limpar a casa de outras pessoas. Mas o melhor que posso fazer é citar aquela música que Sidney cantou em ‘Os Lírios do Campo’: ‘Amém, amém, amém, amém.”’
Em 1982, Sidney recebeu o prémio Cecil B. DeMille aqui, nos Globos de Ouro, e eu sei que neste momento há algumas crianças que me estão a ver a tornar-me a primeira mulher negra a receber esse mesmo prémio. É uma honra, é uma honra e um privilégio partilhar a noite com todas elas e também com os incríveis homens e mulheres que me inspiraram, que me desafiaram, que me apoiaram e que tornaram o meu caminho até aqui uma realidade. Dennis Swanson, que apostou em mim para o talk show ‘A.M. Chicago’. Viu-me no programa e disse ao Steven Spielberg: ‘Ela é a Sophia de A Cor Púrpura.’ Gayle, minha amiga, e Stedman, meu porto seguro.
Quero agradecer à Associação dos Correspondentes Estrangeiros. Todos sabemos que a imprensa está sob cerco, mas também sabemos que é a dedicação incansável pela procura da verdade que nos impede de ficarmos cegos em relação à corrupção e à injustiça, aos tiranos e às vítimas, aos segredos e às mentiras.
Quero dizer que dou mais valor agora à imprensa do que nunca, à medida que tentamos navegar por estes tempos complicados. O que me leva a isto: o que sei com certeza é que dizer a verdade é a ferramenta mais poderosa que temos.
Dizer a verdade é a ferramenta mais poderosa que todos temos. E fiquei especialmente orgulhosa e inspirada por todas as mulheres que se sentiram suficientemente fortes e poderosas para falarem e partilharem as suas histórias pessoais. Cada uma de nós nesta sala é homenageada pelas histórias que contamos e, este ano, tornámo-nos a história. Mas não é apenas uma história que afeta a indústria de entretenimento, é uma história que transcende qualquer cultura, geografia, raça, religião, política ou local de trabalho.
Então quero que esta noite expresse gratidão a todas as mulheres que suportaram anos de maus-tratos e agressões, por terem, tal como a minha mãe, crianças para alimentar e contas para pagar e sonhos por perseguir. São mulheres cujos nomes nunca conheceremos. Mulheres que fazem limpezas e trabalham nos campos. Mulheres que trabalham em fábricas, em restaurantes, nas universidades e hospitais. Que fazem parte do mundo da ciência, da tecnologia, da política e dos negócios. Elas são as nossas atletas nos Jogos Olímpicos e as nossas militares nas forças armadas.
E há ainda outra pessoa, Recy Taylor, um nome que conheço e que acho que vocês também deviam conhecer. Em 1944, Recy Taylor era uma jovem esposa e mãe. Ia da missa para casa, em Abbeville, Alabama, quando foi raptada por seis brancos armados, violada e abandonada de olhos vendados à beira da estrada. Quando ia da missa para casa. Eles ameaçaram matá-la, se ela alguma vez contasse a alguém. Mas a história foi denunciada à NAACP [National Association for the Advancement of Colored People], onde uma jovem funcionária chamada Rosa Parks se tornou a principal investigadora do caso, e juntas procuraram justiça. Mas justiça não era uma opção na era Jim Crow [referência às leis em vigor nos estados do sul dos EUA que institucionalizaram a segregação racial]. Os homens que tentaram destruí-la nunca foram julgados. Recy Taylor morreu há dez dias, pouco antes de completar o 98.o aniversário. Ela viveu como todos nós vivemos, demasiados anos numa cultura desfeita por homens brutalmente poderosos.
Durante demasiado tempo, ninguém ouvia ou acreditava nas mulheres que se atreviam a dizer a verdade sobre o poder desses homens. Mas o tempo deles acabou. O tempo dele acabou! O tempo deles acabou. E eu só espero que Recy Taylor tenha morrido sabendo que a sua verdade, tal como a verdade de tantas outras mulheres que foram atormentadas durante esses anos e que ainda hoje são atormentadas, continua a marchar. Estava presente algures no coração de Rosa Parks quando, quase 11 anos depois, ela decidiu manter-se sentada naquele autocarro em Montgomery, e está aqui presente em todas as mulheres que escolhem dizer “eu também”. E em todos os homens que escolhem ouvi-las.
Ao longo da minha carreira, o que sempre tentei fazer, fosse na televisão ou no cinema, foi dizer alguma coisa sobre como os homens e as mulheres realmente se comportam, como é que experienciam a vergonha, como é que amam e como odeiam, como se enfurecem, falham, recuam, insistem e se superam.
Eu já entrevistei e interpretei pessoas que ultrapassaram algumas das coisas mais feias que a vida nos pode atirar. Mas a qualidade que todos pareciam partilhar era a capacidade de manter a esperança por uma manhã mais brilhante. Mesmo durante as noites mais negras.
Portanto, quero que todas as meninas que estejam a ver saibam que um novo dia está no horizonte! E quando esse novo dia finalmente nascer será por causa de muitas mulheres magníficas, muitas delas aqui nesta sala hoje à noite, e de alguns homens fenomenais, que lutaram duro para se tornarem os líderes que nos vão levar a um tempo em que ninguém terá de dizer ‘eu também’ (#me too) outra vez.”