Sócrates o Grande – não, não estou a falar do filósofo, executado com um copo de cicuta; e muito menos do político português, nas vésperas de ir parar à barra do tribunal, mas do jogador de futebol – inventou a ideia da Democracia Corinthiana. Foi quando no Corinthians, liderado por um grupo politizado de futebolistas, como o próprio Sócrates, Wladimir (como o Lenine), Casagrande e Zenon, resolveram democratizar o clube e fazer uma equipa e um jogo que era fruto da decisão democrática, em que a opinião de um treinador valia tanto como a do funcionário ou do atleta. Pedro Cardoso esteve 36 anos como ator e guionista na Rede Globo e reivindica para a sua profissão e para a vida das pessoas em geral que elas tenham o direito de controlar democraticamente a sua vida. Apresenta de 12 de janeiro até 24 de janeiro a sua comédia “O Autofalante”, no Teatro Independente de Oeiras, baseada num drama contemporâneo: o lugar fora do mundo em que a pessoa desempregada se encontra. Senhoras e senhores, vamos ouvir um dos grandes atores brasileiros de sempre, Pedro Cardoso.
Você é de uma família “tradicional”, o seu avô era presidente do Banco do Brasil.
É uma boa pergunta, mas muito europeia. No Brasil, nós não temos essa ideia de família “tradicional”, dadas a diferença de idades dos países. Tem uma coisa que a gente chama, em São Paulo, os quatrocentões [termo cunhado em meados do séc. xx, em torno dos 400 anos da fundação de São Paulo, para designar a elite da cidade]. A minha família, na verdade, é uma família que enriqueceu. Isso foi o facto que deu à minha família uma certa notoriedade social. Mas é preciso notar que esse meu avô, que foi presidente do Banco do Brasil, começou como continuo, e depois estagiário, numa época, no início dos anos 50, em que esse tipo de trajetória seria mais possível que no mundo atual. O meu avó só fez um curso de Economia a meio da vida.
Foi no tempo da presidência de quem?
Juscelino Kubitschek. E na minha família também temos o meu primo, que foi presidente da República, o Fernando Henriques Cardoso. E o meu avô da parte do pai, esse um homem com uma enorme importância para mim, era especialista em literatura portuguesa. A sua casa era um ambiente totalmente português. O meu avô tinha vindo algumas vezes para Portugal como adido cultural. Ele é fundador da Faculdade de Letras no Brasil. Tem um trabalho muito extenso sobre Gil Vicente e sobre a versificação em Gil Vicente. Era um especialista, para além de Gil Vicente, em Camões e Fernando Pessoa, e tinha um grande prestígio. Isto tudo para contar que eu cresci num ambiente muito português e que vir morar para Portugal, para mim, foi muito familiar.
Porque resolveu vir morar para Portugal?
As razões são muito subjetivas. Eu nunca tinha morado antes fora do Brasil. Quando eu comecei a trabalhar, eu tinha 18 anos de idade, era muito orgulhoso e não aceitei nada da família, embora os meus familiares tivessem dinheiro. Eu vivia por minha conta a fazer teatro e isso. E logo cedo casei, e tive crianças, e logo cedo fiquei sem dinheiro. Nunca tinha morado fora e, como todo o brasileiro, no lugar da educação em que nasci, eu tinha tido uma educação muito europeizada: os autores franceses, ingleses, portugueses, espanhóis, italianos, o Renascimento, todos esses movimentos culturais europeus, que são muito formadores da estrutura de um homem ocidental, eram coisas que eu tinha aprendido em casa, e queria conhecer empiricamente aquilo que apenas tinha visto teoricamente. Por acidente, trazido por um produtor chamado João Nuno Martins, de uma produtora chamada Mandrake, que muito gentilmente me trouxe para cá, para fazer teatro, e comecei a ter maiores ligações aqui. Posteriormente reencontrei-me com a história desse meu avô, ele filho direto de português. Para falar verdade, é difícil encontrar algum brasileiro que, andando três gerações, não tenha pelo menos um familiar português.
Ou italiano.
E provavelmente esse italiano casou com uma portuguesa qualquer. Se andar cinco gerações, não escapa de jeito nenhum de um índio, de um português ou de um africano. Não tem como escapar, vai ter alguém da família.
Mas sendo tudo tão miscigenado, porque é que a divisão de classes é tão racista no Brasil?
Por causa da escravidão. Ela é um facto muito pouco conhecido na Europa. É mal ensinada, é dada com muitas atenuantes.
Até com alguma invisibilidade. Em Lisboa há uma Rua do Poço dos Negros, onde supostamente se lançavam os escravos mortos, mas não há nenhum museu que trate da escravidão.
Aqui em Portugal, não há razão para não contar a história como de facto ela aconteceu, porque a geração atual não pode ser incriminada por factos que se passaram em outras épocas, em que a compreensão ética da vida não era tão democrática como é hoje.
Mesmo assim há um discurso meio enganador quando sublinhamos que fomos dos primeiros países a abolir a pena de morte e dos primeiros a ir abolindo a escravidão, quando o fizemos a prestações e depois de sermos dos que mais lucraram com esse comércio.
Não me sinto à vontade para julgar a história de Portugal. Aliás, a primeira coisa que eu fiz quando cheguei foi comprar um livro sobre a história de Portugal. Eu nem sabia quem era o D. [Afonso] Henriques. Não tenho a experiência de ser português, por isso falo em tese, referindo-me a um sentimento europeu mais geral. A escravidão de África feita pela exploração dos povos europeus tem consequências muito mais complexas do que aquelas que são ensinadas aqui. A expansão do pensamento europeu iniciada nos séculos XV e XVI é um assunto que não devemos evitar analisar, porque o mundo em que vivemos hoje ainda é resultado deste movimento histórico que está em curso, ele ainda não se esgotou. Tenho lido recentemente muito Mia Couto, Agualusa e Pepetela, e é a maravilhosa a descrição que eles fazem dos países de onde vêm. Países que são resultado da colonização. Porque nem geograficamente aqueles povos estariam unidos numa organização jurídica, quem fez aquela distribuição foi o colonizador. Ainda agora, esses povos têm de lutar pela sua identidade. O Brasil vive ainda esse processo. Quando eu venho para Portugal é como vir conhecer, em puro sangue, uma das fontes do Brasil, onde encontro mais genuinamente aquele traço que no Brasil já está mais diluído entre a cultura africana, a cultura local indígena e a de todas as outras menores imigrações, como a italiana e do Japão.
Mas somos muito diferentes. Estava a lembrar-me da letra do “Fado Tropical”. Há uma espécie de fatalismo e melancolia que parece mais portuguesa que brasileira, e a alegria parece mais uma coisa vossa, não acha?
Às vezes acredito que os povos, como as pessoas, gostam de fazer uma imagem de si mesmos que não corresponde à realidade.
Como quem faz um perfil de Facebook?
Isso. Acho que devemos fazer a nossa entrevista como uma boa conversa. Um perfil de Facebook é exatamente a imagem, faço minhas as suas palavras. Espero que façamos este diálogo em conversa, porque a conversa é a melhor entrevista. Os argentinos escolhem o tango para se representarem, os brasileiros, o samba, e os portugueses, o fado, mas há muita melancolia no Brasil e há uma imensa alegria em Portugal e nas pessoas. Nunca me agradou a ideia de vir para cá e de viver em guetos brasileiros. Jogo futebol no Estoril Praia, onde sou o único brasileiro do time.
Normalmente, no futebol português é o contrário.
Sou o único brasileiro aqui a jogar no Estoril Praia com o Hugo Mota. Eu gosto de conviver com Portugal. Quando você faz um processo de emigração, você não deve refazer o seu país para o lugar onde você está indo. Você deve de facto gostar daquele país. É certo que eu nunca vou ser português, vou apenas ser juridicamente. O que é diferente de ter vivido a vida toda aqui. Mas serei português por uma decisão intelectual, e serei num espírito de compreensão: eu amo Portugal e adoro estar aqui.
É uma pergunta que devem ter feito a vários brasileiros: qual a razão porque, com tanta proximidade e afeto, o humor dos brasileiros tenha escolhido os portugueses como alvo.
Acho que isso é uma reação edipiana de destruição do próprio pai. Acho que as piadas que a gente faz sobre português no Brasil devem estar ligadas a um sentimento de inferioridade que, durante muito tempo, a gente deve ter tido. Sabe que o teatro no Brasil, até 1950, com Nelson Rodrigues, era falado com um sotaque português. Já não havia um sotaque português nas ruas, mas nos palcos ainda se fazia esse sotaque para parecer a sério. O que, de alguma maneira, ainda está presente. De certa forma, o povo brasileiro ainda se sente oprimido. Isso tem que ver, em minha opinião, com o pensamento científico. Os povos europeus é que desenvolveram o pensamento científico e foi ele que tornou efetivas certas ações humanas. Eu não penso que o saber científico é mais sábio que outros modos do saber. Mas o saber científico, para certas coisas mais práticas da vida e técnicas, é aquele que é necessário: um carro anda porque há motor a combustão que foi inventado pelo pensamento cientifico…
Mas não há uma reversão assustadora no Brasil, a esse nível, da tolerância com o pensamento científico e até com o pensamento? Parece-me assustador que a Judith Buttler (filósofa feminista) vá a uma universidade do Brasil e tenha um grupo a insultá-la e até gente a agredi-la, a ela e à companheira, no aeroporto. Quando vi as declarações dos deputados na votação do impeachment da Dilma, fiquei a pensar: se isto é a elite, coitado do povo.
Mas isto não é a elite. A elite do Brasil é o povo. A vanguarda intelectual do Brasil é o povo. Penso que isso acontece em todos os países, e não aquilo que comummente chamamos a elite. Há quem tenha muito mais que o povo economicamente, mas não intelectualmente. Você coloque a questão: culturalmente, qual é a grande criação que o Brasil teve até aqui? É o samba. O samba é uma criação do povo, não é uma criação da academia nem da intelectualidade, o samba é uma criação do encontro do africano com os ritmos latinos que nos chegavam. Quem são os grandes jogadores de futebol do Brasil? Também não vieram das academias nem das elites económicas.
O jogador brasileiro com mais golos marcados, cerca de 1300, era filho de uma negra, tinha nome alemão, Friedenreich, mas para entrar em campo tinha que perder mais tempo para pintar a cara de branco.
É verdade. Mas quem é que foi o menino que fez o golo que vos deu a Eurocopa? Eder também não veio da elite. Em França, a Edith Piaf também não é uma mulher que veio da elite. Muitas vezes, a arte e a criação não nascem do dinheiro nem da academia, que supostamente valida o conhecimento.
Até aparece que, nas sondagens, os eleitores mais escolarizados dizem que vão votar no Bolsonaro, o candidato de extrema-direita, que apoiou a ditadura militar.
Acho que muitas das sondagens são duvidosas. Gosto muito de uma passagem de Umberto Eco em que ele fala sobre as estatísticas e relembra que na estatística, quando uma pessoa come dois frangos e a outra nenhum, a conclusão é que, em média, cada um come um frango. É uma ciência que induz a uma compreensão difícil. O que a gente está vendo no Brasil hoje, o que dá razão à sua perplexidade, é que o Brasil sempre teve uma margem muito estreita para um pensamento mais livre e um pensamento mais preconceituoso, entre um pensamento mais progressista e mais preconceituoso. O advento do PT ao poder é uma coisa semelhante ao que foi para vocês a Revolução dos Cravos. Eu digo semelhante, e não igual. A revolução teve um grande conteúdo de pensamento de esquerda, assim como a chegada do PT ao poder; assim como na vossa revolução, começa a haver uma maior resistência das pessoas que não comungam destas convicções com essas ideias de esquerda. A resposta que Portugal deu, e falo com humildade, foi a democracia. Desde que eu estou aqui já peguei um governo de centro-direita e outro de centro-esquerda, e já estava cá com o do Sócrates. Já vi funcionar alguma alternância. Entretanto, algumas convicções que são trazidas pelas ideias de esquerda estão tão dentro do corpo das ideias de Portugal que nem um governo de direita fará algo contra essas convicções. Dificilmente alguém se levantará para falar contra escola pública e contra escola integral. No Brasil, nós ainda não temos sequer escola integral [é o facto de a escola ocupar o dia do estudante, e não apenas um curto número de horas]. O Brasil está ainda muito atrasado. A criança é depois largada na rua. A escola é um processo europeu, tal como o comunismo e o socialismo são criações europeias. No Brasil, as ideias progressistas e conservadoras ainda se disputam muito taco a taco. Estamos a viver um momento de reação muito forte aos erros cometidos pelo governo de esquerda. E esses erros são inegáveis, embora eu ache que a chegada do PT tenha trazido coisas boas: os erros cometidos deram margem para que os inimigos dessas medidas de justiça social digam, para se opor à parte boa, que aquilo tudo não passou de uma roubalheira. Quando o mais importante não tenha sido isso.
Até de alguma forma se pode dizer que a roubalheira sempre existiu. Não se esperava que o PT fosse fazer política à mensalão, da mesma forma que fizeram todos os outros partidos.
O PT é, na minha opinião, uma tragédia histórica que pode atrasar o Brasil 100 anos. Não porque ele seja o culpado dos nossos problemas, mas como ele era a solução, não se realizar e desiludir pode ter sido trágico e levar gerações a ultrapassar essa desilusão.
Do ponto de vista profissional, você é um desempregado no Brasil por causa do seu sucesso.
É isso. O que se passou foi uma coisa política. Por muito sucesso que eu tivesse. Na estrutura de comando do capitalismo não há lugar para o operário. A empresa capitalista é sempre piramidal. O repórter vai sempre reportar a sua matéria ao seu editor, que provavelmente vai mudar o título e até editar a peça. E isso segue numa escala de poder até chegar ao editor-chefe e depois ao dono, que decide absolutamente tudo. Não há democracia. Isso é uma coisa que me interessa. As pessoas queixam-se por falta de democracia na vida pública, mas não se queixam pela sua total ausência dentro das empresas.
Você foi vítima da falta de democracia? Esteve mais de 20 anos na Globo.
Estive 36 anos. Eu sou uma espécie de anomalia do sistema. Um ator com tanto prestígio perante o seu público e um ator que também é um roteirista [guionista], escrevi muitos anos para televisão.
Mas há muitos atores de enorme prestígio no Brasil. Estou a lembrar-me de dois já falecidos: o Paulo Gracindo e o José Wilker que, para além de ser ator, também realizou filmes…
Nenhuma das pessoas que citou, nem o António Fagundes, teve a possibilidade de desenvolver em televisão um projeto da sua própria conceção, estavam todos enquadrados num dos vários lados do projeto. Estavam no momento da montagem que lhes cabia. Alguns, com grande genialidade, fazem daquele momento alguma coisa de luminoso que transcende, mas não deixam de ter o controlo apenas daquele momento. Não deixam de estar limitados e de terem hora para entrar e para sair. E seguir o texto, e terem que obedecer ao mote da novela, dada por uma estrutura de comando em que eles não participam. Então, um ator que reivindique autoria é uma ameaça a esse sistema piramidal.
Sobreviveu 36 anos nesse sistema. Só começou a reivindicar no fim?
Não. Reivindiquei todos os dias. Sempre fui um incómodo. Tive a sorte de habitar um pequeno nicho na Rede Globo em que o líder, que era o Guel Arraes, tinha a habilidade de motivar a criatividade, e ele aproveitava muito da iniciativa democrática de todos, dando para a Globo a aparência de que havia uma estrutura de comando clássica quando, na verdade, havia muito de criação coletiva.
Quando é que isso quebrou e rasgou?
Recentemente, com a crise, o modelo de distribuição que passa pelas tecnologias online torna o negócio muito mais tenso. Neste momento em que, no meu entender, deveria haver uma enorme democratização, houve uma enorme centralização: quem manda nas coisas e na Rede Globo não são os artistas, são os administradores.
Mas há exemplos contrários, como o grupo Porta dos Fundos, que conseguiu um modelo de independência graças à internet.
Mas para isso tiveram que justamente sair da Globo, onde estavam todos. A Rede Globo colocou sobre eles um comando e eles recusaram. Saíram. Eu não tive essa oportunidade, na minha época não havia internet. Eles arriscaram, trabalharam cinco anos, provavelmente ganhando muito pouco ou nada, até transformarem o negócio deles numa coisa rentável, justamente porque não tinham um comando. Porque conseguiram manter no grupo a autoria do autor. Isso não é só um momento de escrever um texto, a própria interpretação é um momento de autoria e de dar um cunho próprio. Eu vejo no Brasil e em Portugal um sistema que não dá a liberdade ao ator, mas uma cadeia de comando, rígida e insensível, que mantém uma espécie de linha de montagem.
Dia 12 de janeiro vai estar em cena em Portugal a sua peça “Autofalante”.
Já veio a Portugal, quando eu não morava aqui, mas agora quero fazê-la de uma forma diferente, como alguém que vive aqui e que quer participar na vida cultural do sítio onde vive.
É sobre o quê?
É sobre um problema estrutural do capitalismo, que é o desemprego. O altifalante é como o modo como o desemprego pode enlouquecer alguém. O desemprego não tem nenhum sentido existencial. O índio acorda de manhã e, no seu mundo, não há desemprego, porque não há capitalismo. Ele tem que fazer as coisas dele: caçar, cuidar dos filhos, tratar da roupa. Como não há capitalismo e não há também especialização, ele tem um conhecimento muito mais amplo que nós, que só temos uma profissão – ele tem que cuidar da sua vida toda. Então, o desemprego é criado pelo capitalismo, ele é fundamental para ele, e ele cobra um preço caríssimo ao indivíduo. Ele apanha todo o mundo. Há sempre alguém que a gente conhece que está desempregado. E as grandes questões políticas são aumentar e diminuir o desemprego, mas nunca ninguém propõe acabar com ele. Porque extinguir o desemprego implica uma outra forma radicalmente diferente de organizar a sociedade que não pode ser esta. A peça é sobre isso, sobre a eternidade do desemprego. Ele cai como numa roleta russa em cima da cabeça de alguém. Nesse sentido, a peça é uma crítica profunda ao capitalismo, que jamais trará felicidade a todos.