Se em matéria de política externa o programa eleitoral da candidatura de Donald Trump à Casa Branca até fazia crer que a sua administração iria procurar uma postura relativamente dinâmica, e até intervencionista, fora de portas – frases como «paz através da força será o centro da nossa política externa» ou «os EUA vão prosseguir operações e coligações militares agressivas para esmagar e destruir o Estado Islâmico» faziam parte do cardápio apresentado ao eleitorado -, os primeiros 11 meses e meio da sua Presidência mostraram que o caminho escolhido é o do isolacionismo.
O discurso protecionista e nacionalista promovido pelo chefe de Estado americano foi colocado em prática com a retirada, ou a intensão de retirada, de diversos compromissos internacionais, como o acordo de comércio livre transpacífico (TPP), o acordo de Paris sobre o clima, o NAFTA ou a UNESCO. Mas também com o encerramento das portas dos EUA a cidadãos oriundos de determinados países de maioria muçulmana, com a desconfiança sobre a viabilidade do acordo nuclear iraniano, com a redução do financiamento para as Nações Unidas ou com a decisão de apoiar unilateralmente o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel.
A constatação do desprezo de Trump pela ideia de que a cooperação internacional pode imperar sobre os interesses nacionais ficou bem gravada na pedra aquando das palavras proferidas na Assembleia-Geral da ONU, em setembro: «Enquanto presidente dos Estados Unidos, procurarei colocar sempre a América em primeiro lugar. Tal como vocês, enquanto líderes, deverão e colocarão sempre os vossos países em primeiro».
A estratégia preconizada pela administração Obama, que Evan Osnos, da New Yorker, descreve como a da «liderança a partir de trás», foi transformada por Trump numa verdadeira «retirada da frente», particularmente nos campos que este considera «arriscados, custosos ou pouco atrativos politicamente» para os EUA. Talvez por isso, o novo papel dos americanos na arena internacional tenha, por estes dias, cada vez menos parecenças com o exibido durante os tempos da Guerra Fria, quando Washington se assumia sem pudor como o ‘polícia do mundo’. Um polícia que procurava estar presente em todo o globo através do seu poderio militar, mas também das suas ferramentas de soft-power – empresas, trocas comerciais, ideias e valores – e com essa postura influenciar mais do que todos os outros. O caso sírio é paradigmático nesta matéria, onde a Rússia reforçou a sua influência com o fim da guerra e a vitória de Bashar al-Assad sobre os rebeldes apoiados pela coligação internacional liderada pelos Estados Unidos.
Mas há outros casos em que o retraimento americano resultou na entrada em cena ou no reforço regional de posições de outros atores do jogo das potências. Veja-se, por exemplo, o Paquistão, onde a China irrompeu em força há uns anos e aproveitou o arrefecimento das relações entre Islamabad e Washington para, nestes últimos dias, fixar ali raízes que se adivinham duradouras.
No mesmo dia em que os EUA anunciaram o congelamento dos fundos de apoio de segurança para o Paquistão – já depois de Trump ter escrito no Twitter, que foram «ridiculamente oferecidos mais de 33 mil milhões de dólares durante os últimos 15 anos» aos paquistaneses, tendo Washington «apenas» recebido em troca «mentiras e enganos» – por entenderem que aquele país pouco faz para combater o terrorismo e os talibãs na região, Islamabad revelou que o yuan chinês passará a ser utilizado como valor cambial nas trocas comerciais com Pequim, colocando-o numa posição de paridade com o dólar e o euro. «Foram tomadas medidas (…) para garantir que as importações, exportações e as transações financeiras serão realizadas em CNY [sigla de referência do yuan]. A sua utilização irá estimular o comércio bilateral e trará benefícios a longo prazo para ambos os países», anunciou o Banco Estatal do Paquistão, num comunicado divulgado na quinta-feira.
O investimento chinês no Paquistão insere-se no projeto megalómano, em curso, de criação de uma nova ‘Rota da Seda’ – posta em prática com a construção de um corredor económico entre a China ocidental e o Oceano Índico, composto por linhas de comboio, autoestradas, portos e redes elétricas – mas também é o resultado direto da aposta chinesa em ocupar os espaços deixados ‘livres’ pelos americanos. Tanto os físicos, como aqueles que estão ligados à defesa de causas de interesse público.
Tal estratégia explica os milhões investidos na Europa, em África e na Ásia, não apenas em matéria comercial, mas também diplomática, militar, securitária e científica, e explica também o aumento brutal do financiamento chinês ao orçamento da ONU e das missões de manutenção de paz. Naquela postura cabe ainda o redobrado e estratégico interesse chinês nos debates sobre as alterações climáticas, o terrorismo ou a proliferação nuclear. Tudo posto em prática através de investimentos financeiros que ultrapassam largamente os montantes transferidos pelos EUA, no âmbito do Plano Marshall de 1947, que ajudou à reconstrução da Europa no pós-guerra. E que reforçam o papel da China enquanto ator com capacidade de influenciar cada vez mais longe dos seus portões.
É certo que a capacidade militar ainda se afigura como o maior dissuasor e o principal meio de projeção de poder e, nesse sentido, Pequim, ou mesmo Moscovo, ainda estão a anos-luz de Washington – a China tem apenas dois porta-aviões, um deles velhinho e o outro por estrear, ao passo que os EUA têm 12, destacados em todas as regiões do mapa. Para além disso, os Estados Unidos estão envolvidos – enquanto líderes – em tratados de Defesa e ajuda mútua com mais de 50 países. Tendo em conta estes dados, não é desadequado afirmar que os norte-americanos têm todas as condições para continuar a exercer o papel de superpotência global. Mas a cada demonstração de isolamento ou retração, os chineses respondem com dinheiro, investimento e ajudas.
Convém recordar que a China, a par da Rússia, foi recentemente rotulada por Trump como «potência revisionista» e «rival» dos EUA. Também por isso, o Presidente terá de avaliar se o preço a pagar pela doutrina America First não trará Pequim para perto do poleiro americano.