Nos cantos da montra do número 82 da Rua do Carmo acumulam-se montículos de neve artificial, vestígios da quadra festiva que terminou no passado dia 6 de janeiro, Dia de Reis. Mas, na Livraria Aillaud & Lellos o ambiente não é de festa, muito pelo contrário. As vidraças que dão para uma das ruas mais movimentadas de Lisboa estão tapadas com papel de cenário e na porta de entrada, por cima do horário, encontra-se um aviso em letras garrafais que não deixa margem para dúvidas: ‘ENCERRADO’.
Espreitando para o interior, vislumbram-se caixotes de cartão espalhados pelo chão, estantes desarrumadas e algum movimento de pessoas. Experimentamos bater no vidro e a pesada porta de metal corre sobre a calha. Quem aparece é Teresa Alemão, que trabalha na Aillaud & Lellos há 25 anos. «Toda a gente foi apanhada de surpresa na terça-feira» pelo telefonema do proprietário, José Manuel Lello, a dizer que a livraria ia fechar, revela. O que significa que, quando as funcionárias trancaram as portas e apagaram as luzes no dia 30 de dezembro de 2017, depois de um Natal «muito fraco», não faziam ideia de que era a última vez que a loja estava aberta ao público.
O motivo do encerramento desta livraria com 86 anos é o aumento «brutal» da renda, na expressão de Teresa Alemão, que desconhece ainda que tipo de negócio ocupará este espaço. O destino das três empregadas, esse, é certo: o fundo de desemprego. «É o maior empregador do país», comenta Conceição Fernandes, que tem quase 30 anos de casa.
Razia nas livrarias e pressão imobiliária
Com a entrada das grandes superfícies no mercado livreiro, a venda de livros na internet e a concorrência agressiva de cadeias de livrarias como a Fnac ou a Bertrand, ambas presentes no Chiado, a clientela das livrarias tradicionais como a Aillaud & Lellos diminuiu drasticamente nos últimos anos. Em 2012 já chegara a hora da Livraria Portugal, duas portas acima. Hoje é uma loja do franchising Ale-Hop, que vende presentes, acessórios, artigos de decoração, utilidades e inutilidades. Um pouco abaixo, na Rua do Ouro, a Livraria Rodrigues encontra-se ainda com livros expostos nas montras, mas de portas sempre fechadas, com o pó e a correspondência a acumularem-se no chão.
Curiosamente, é agora que a loja vai fechar que as três funcionárias da Aillaud & Lellos estão mais atarefadas. «Segunda-feira à tarde temos de entregar a casa, portanto temos hoje e amanhã para fazer tudo», continua Teresa Alemão. «Estamos a arrumar os livros para fazer a devolução aos editores. Uns vêm cá recolher, outros tem que se levar lá. Os livros vão ser todos devolvidos», explica. Mesmo os mais antigos, com ricas encadernações, que vemos protegidos por detrás do balcão? «Esses são da Lello», e vão regressar à casa-mãe, a livraria da Rua das Carmelitas, no Porto, considerada a mais bela do mundo.
Ao mesmo tempo que é preciso arrumar os livros e fazer registos no computador, o telefone não pára de tocar. «Acabou-se, não vou atender mais!», desabafa Conceição Fernandes. «Não é para mim». Lá fora, duas pessoas aproximam-se da entrada e batem à porta. «Somos de uma agência imobiliária pequena e achámos estranho a loja estar fechada. Há maneira de contactar com o senhorio?». A pressão imobiliária no Chiado é enorme e uma loja vazia numa zona ‘prime’ como a Rua do Carmo constitui um troféu muito desejado. «Só lhe posso dizer o nome dele», responde Teresa Alemão, enquanto consulta uma agenda. Lê o nome completo do proprietário e comenta no final: «É nome de pessoa rica!».
Altos e baixos, clientela ilustre
A funcionária mais antiga da casa é Isabel Ferreira. Chegou há 44 anos. «Quando vim para cá o pai deste patrão que temos agora era sócio da livraria do irmão. Mas faleceu num acidente, quando o filho era pequeno, e portanto ficou o tio só e o Zé Manel [atual proprietário], que tinha a mãe como tutora, uma vez que ele era ainda uma criança. Depois o tio faleceu e é o Zé Manel que está à frente da loja», explica.
Fundada em 1931, a Aillaud & Lellos juntava duas famílias de livreiros – a primeira delas de origem francesa, como tantas outras do mundo da edição em Portugal (Jean Pierre Aillaud, natural de Monestier de Briançon, no sudeste montanhoso de França, fixou-se em Coimbra em 1772). A fachada da loja, da autoria de um colaborador de Cassiano Branco, ainda exibe requintes próprios de outros tempos, como os relevos que reproduziam lombadas de livros ou os nomes de seis autores gravados para a posteridade no mármore cinzento de Estremoz: Camillo, Teóphilo Braga, Guerra Junqueiro, Eça, Abel Botelho e Thomaz Ribeiro.
«Antigamente era tudo diferente, era melhor», continua Isabel Ferreira. E desfia um rol de nomes de livrarias que já não existem. «Havia clientela para todas». Já Conceição Fernandes recorda os «serões» que se faziam por causa dos livros escolares. «Era uma galhofada, uma brincadeira pegada. Também fazíamos muitos serões para o balanço, que calhava precisamente nesta altura».
Depois o negócio foi caindo. «Aquela época logo a seguir ao incêndio [agosto de 1988] foi muito má», diz Isabel Ferreira, que chegou em 1973. «Estava tudo queimado, as pessoas não vinham para aqui». Ainda assim, a livraria não foi diretamente afetada pelo incêndio. «Foi só do elevador para cima».
Apesar de já ter conhecido melhores dias, a Aillaud &Lello manteve até ao fim uma clientela fiel. Entre os seus frequentadores ilustres contava-se «muita gente do teatro, do Dona Maria, escritores como o José Jorge Letria, o dono do Hotel Avenida Palace, um antigo ministro das Finanças e o Vítor Constâncio. OMarcelo Rebelo de Sousa também passa aqui, vê as montras, também compra», refere Teresa Alemão, que parece ainda não ter interiorizado o fecho do espaço. Já Isabel Ferreira, que passou «uma vida» ao serviço da livraria parece conformada: «Tudo tem um princípio e um fim. Não era assim que a gente queria, mas pronto».