Se há um clube de Lisboa que desperta de forma unânime um sentimento de simpatia nos amantes do futebol português, independentemente da cor clubística, esse clube é o Atlético. Nascido em 1942 na freguesia de Alcântara, resultado da fusão entre o Carcavelinhos e o União de Lisboa, o Atlético Clube de Portugal depressa se estabeleceu como uma força no desporto português, obtendo êxitos não só no futebol como no basquetebol e no hóquei em campo, com a conquista de campeonatos regionais, dois terceiros lugares na I divisão (1943/44 e 1949/50) e duas presenças na final da Taça de Portugal – derrotado em 1945/46 pelo Sporting (2-4) e em 1948/49 pelo Benfica (1-2).
Somou 24 participações na divisão maior do futebol português. Por ali passaram nomes grandes até da história da seleção nacional, como Germano Figueiredo ou Ben David – dele falaremos novamente mais à frente. Em 1976/77 fez a última temporada entre os grandes e foi alternando entre o segundo e o terceiro escalão. Até este ano: depois de uma época penosa na II Liga em 2015/16, o histórico clube da Tapadinha caiu de divisão e viu-se a competir no Campeonato de Portugal. Este tropeção agudizou a divisão interna que já se verificava há algum tempo entre o clube e a SAD, formada aquando do regresso às competições profissionais, em 2011, e que sempre andou de costas voltadas para os adeptos.
De repente, a equipa B, formada em 2015/16 para competir nas divisões distritais e ser um apoio da equipa profissional, passou a ser a equipa do clube. A da SAD deixou de treinar e jogar na Tapadinha e desceu mais um patamar, caindo para os distritais.Esta época ainda se inscreveu, mas não tinha jogadores: deu duas faltas de comparência, foi eliminada da I divisão distrital e impedida de competir nos próximos dois anos. E é aqui que entra o Atlético atual: a equipa do clube, já não equipa B mas sim equipa emancipada e a única a competir com o histórico nome.
«Desportivamente, o Atlético SAD terminou, pelo menos durante estes dois anos. Neste momento, é uma prioridade resolver o diferendo do clube com a SAD, porque temos uma SAD constituída sem equipa. Este é o Atlético original. Estamos na terceira divisão distrital, mas a nossa ideia é em 2020/21 estar no Campeonato de Portugal e a médio prazo colocar novamente o Atlético nos campeonatos profissionais. Temos de fazer este caminho e vamos fazê-lo com o máximo de distinção possível, subindo todos os anos, com mais ou menos dificuldade. Mas um clube como o Atlético não pode estar numa competição distrital, este não é o nosso lugar. Temos um peso histórico gigante, não só em Lisboa como a nível nacional. Se calhar somos o quarto clube da cidade de Lisboa, no histórico da I divisão ainda aparecemos em 21º ou 22º. Um clube desta dimensão não pode estar nos distritais.» A frase é forte e pertence a RicardoDelgado, empresário nascido e criado em Alcântara, que aos 38 anos se viu a assumir a presidência do clube de sempre. «É um sonho, nunca imaginei. É uma honra imensa e uma responsabilidade gigante. Apanhámos o clube numa situação gravíssima: quando aqui chegámos, estava muito mais próximo de fechar portas do que se manter aberto. A direção anterior demitiu-se nove meses depois de ser eleita e o clube entrou num vazio.Tentámos reunir um conjunto de pessoas de várias fações, agregar pessoas das três listas das eleições anteriores e houve uma lista única encabeçada por mim.Mas eu sou apenas a parte visível: como o Atlético está, precisamos de toda a gente», garante o presidente do Atlético.
A mística que já foi ainda pode voltar
Os desafios que se avizinham para o clube que em 2017 celebrou 75 anos de vida são gigantescos. Para já, Ricardo Delgado pretende «estabilizar financeiramente o clube e resolver o problema da SAD», que pode passar até pelo clube assumir a gestão da mesma. Depois, entra a questão da subida: neste momento, o Atlético ocupa o terceiro lugar da Série 2 da 1ª Divisão da AF Lisboa (terceira divisão distrital), a um ponto dos dois primeiros – a equipa B doEstoril e o Fontainhas –, que valem a subida. Este fim de semana, visita o campo da equipa B do Casa Pia, mas é na Tapadinha que o presidente já vai vendo o «regresso da mística alcantarense». «O Atlético tem um passado histórico gigante, mas os últimos anos criaram um divórcio entre os adeptos e o clube. Muitos sócios desistiram de o ser porque achavam que o dinheiro das quotas ia para o investidor. Devemos ter neste momento entre os 500 e os 600 sócios pagantes, o que é muito pouco. Um clube sem adeptos não tem razão de existir. Mas temos feito um trabalho de fidelização, de melhorar a comunicação para com os adeptos, apostar nas redes sociais, partilhar os resumos dos jogos, e já vamos notando diferenças aos domingos à tarde. Ainda somos poucos nas bancadas, gostava que fôssemos muito mais, até pensando nos exemplos de clubes a que aconteceram situações parecidas e onde os adeptos se juntaram para ajudar. Estou a lembrar-me de Farense, do Espinho, do Beira-Mar. Os adeptos e simpatizantes ajudaram a reerguer o clube, e acho que na Tapadinha vai acontecer o mesmo. Vão fazer parte da solução», acredita Ricardo Delgado.
No imaginário do presidente alcantarense estão os tempos gloriosos do Atlético na I divisão. «Nunca apanhei a equipa na I divisão e gostava, porque oiço os relatos dos sócios antigos. A Tapadinha com 14 mil pessoas, o pião cheio… Devia ser fantástico. Estamos a tentar puxar pessoas novas, jovens, para voltarmos a ver essa mística que havia antigamente. Hoje temos um grupo de miúdos que formaram a claque Yellow Devils, dão cor às bancadas, mostram a Tapadinha viva, as bandeiras, as tarjas: no jogo de apresentação mostraram uma que dizia: ‘Honrem a história, honrem a camisola’. Obviamente que isso dá alegria às bancadas. Queremos meter novamente o Atlético no radar das pessoas, modernizando as instalações, subindo de divisão, criando modalidades diferentes – este ano abrimos o futebol feminino. Fazer as pessoas sentirem-se parte do clube. Um sócio num clube superior é apenas um número; no Atlético pode fazer a diferença, a sua falta é sentida», realça Ricardo Delgado.
‘Ainda falta ir à Tapadinha’
«Nos anos 40 e 50, quando o Benfica, Sporting ou FC Porto estavam à frente dos campeonatos, as pessoas diziam: ‘Calma, que ainda temos de ir à Tapadinha’.» A frase de Ricardo Delgado é corroborada amiúde pelos antigos assim que o nome do Atlético Clube de Portugal vem à baila. Muito antes de Eric Mao aterrar em Lisboa e se tornar no primeiro chinês a ‘comprar’ um clube profissional em Portugal, em 2013, colocando o Atlético debaixo do radar da UEFA como clube com «potencial risco de manipulação de resultados desportivos», dado o envolvimento do referido investidor em casos relacionados com o tema no passado, bem como a contratação de jogadores com historial «suspeito» (o guarda-redes letão Igor Labuts ou o médio serra-leonês Ibrahim Kargbo, que se encontra inclusivamente suspenso pela Federação do seu país por alegadamente ter participado na viciação de um jogo entre a Serra Leoa e a África do Sul, na qualificação para o Mundial 2010).
Esse temível Atlético de antigamente, aquele que fazia as bancadas vibrar, tinha em Henrique de Sena Ben David o seu expoente máximo. Nascido em Cabo Verde, chegou a Portugal ainda adolescente para jogar no Unidos de Lisboa, que lhe garantia outro emprego. A empresa que suportava o clube deixou de o fazer, porém, e Ben David mudou-se para a CUF, do Barreiro, onde maravilhava no campo, ao lado de Manuel Vasques e José Travassos (sim, ambos membros dos Cinco Violinos do Sporting anos depois), e também na fábrica de automóveis da empresa que geria o clube – consta que era um excelente mecânico. Em 1947, aos 21 anos, mudou-se para Alcântara e, qual furacão, varreu o futebol português. De estilo gingão, alto e esguio, tinha uma técnica refinada e um apuradíssimo faro pelo golo.
Em 1950, na estreia pela Seleção nacional – foi o primeiro jogador natural de Cabo Verde a representar Portugal –, deslumbrou, levando os comentadores ingleses a considerá-lo o melhor avançado que tinham visto até então. Acabou por pendurar as chuteiras antes dos 30 anos devido a uma sucessão de graves lesões no menisco (foi operado seis vezes). Marcou 98 golos em 119 jogos pelo Atlético e tornou-se uma lenda do clube. Viria a falecer em 1978 nos Açores (Ponta Delgada), precisamente no dia em que completava 52 anos.
Antes de Ben David, antes dos terceiros lugares na I divisão e das finais da Taça, houve história a ser feita por um antepassado do Atlético: o Carcavelinhos, que em 1927/28 conquistou o Campeonato de Portugal. A prova, única que se disputava no país nessa altura, viria mais tarde a dar lugar à Taça de Portugal, mas ganhou nova dimensão com as recentes reivindicações de Sporting e Belenenses, que se consideram campeões nacionais nas épocas em que conquistaram essa competição e pretendem ver esses títulos adicionados à contagem oficial de campeonatos nacionais. Como natural herdeiro doCarcavelinhos, o Atlético vê igualmente com bons olhos a possibilidade de passar a integrar esse «lote restrito de campeões». «Não discutimos até aos dias de hoje, nem o faremos, a génese do Campeonato de Portugal, mas ostentamos com orgulho esse triunfo. Nessa ótica, caso a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) considere o título de 1927/28 como sendo de Campeão Nacional, o Atlético passará a figurar entre esses campeões, tal como figura hoje, honrada e orgulhosamente, entre os Campeões de Portugal», salienta Ricardo Delgado, deixando ainda um pormenor curioso – e importante: «Se formos campeões destas divisões em que nos encontramos atualmente, e se o Campeonato de Portugal for considerado como um campeonato oficial pela FPF, seremos o único clube campeão em todas as divisões do futebol nacional.» Não é coisa pouca, não senhor.