Não sabemos se o jovem perfilado – e é este um dos pormenores mais tocantes e ambíguos na imagem: respeito perante a morte ou militarismo incipiente? – eventualmente se juntaria a breve prazo ao irmão morto que carrega às costas. Sabemos, sim, que ele é um dos Hibakusha, aquelas centenas de milhares de japoneses – e de alguns prisioneiros de guerra norte-americanos, também – que foram afetados pela radiação libertada nas explosões. A imagem é impressiva e evoca uma frase atribuída a Nikita Khruschev: [numa guerra nuclear] «os vivos invejarão os mortos». É notável que o Papa Francisco a tenha escolhido no penúltimo dia de 2017 como mensagem preparatória do primeiro dia de 2018, aquele que a Igreja Católica dedica, fora do calendário litúrgico, à Paz universal. ‘Franciscus’, assim assinou o Papa, legendou a fotografia em italiano: «… il fruto della guerra».
A mensagem visual do Papa surtirá tanto mais efeito quanto mais viva a nossa inquietação por assistirmos à deslocação de alguns dos eixos da estabilidade geopolítica conhecidos das últimas décadas. Para aludir a um só deles, cite-se novamente Khruschev: «Fico muito satisfeito de tal ouvir, uma vez que provenho da Ucrânia: A partir de agora poderei dormir em paz. Telegrafarei imediatamente à minha filha em Kiev». O que quereria o líder soviético significar em 1956 com esta frase? Khruschev ironizava em resposta ao primeiro ministro sueco Tage Erlander, que acabara de assegurar-lhe que o seu país não tencionava repetir a incursão de Carlos XII na Ucrânia, aquela que conduzira à célebre batalha de Poltava (1709).
Dois anos antes daquele seu gracejo, em 1954, o líder soviético fizera transitar – num ato administrativo entre duas repúblicas socialistas que certamente lhe terá parecido inócuo – a Crimeia da Rússia para a Ucrânia. No entanto, como julgaria Khruschev a situação presente, quando a grande nave ucraniana voga, sem amarras e sem leme, ao sabor de correntes geopolíticas desencontradas? Teria ainda a veleidade de gracejar?
E note-se que este é apenas um dos focos – todavia, aquele que consideramos mais prenhe de ameaça – entre tantos outros (Síria, Irão, Israel, Caxemira, Península da Coreia, mais aqueles que o Diabo terá escondidos na sua manga ancha) que poderão levar tantos de nós a provar os amargos frutos da guerra. Junte-se-lhes o desbragamento de linguagem dos líderes, a demonização mútua entre alguns deles, a percetível inquietação e a revolta surda dos eleitorados em democracias consideradas de referência, tudo isto sob um fundo de problemas climáticos e de poluição verdadeiramente globais. Bastas razões, portanto, para termos sentido o verdadeiro abanão, senão mesmo o murro no estômago, que o Papa, e muito bem, decidiu desferir-nos no final de 2017.
Que o assunto da Paz mundial está especialmente presente na mente do Papa Francisco prova-o a recente realização no Vaticano (10 e 11 de novembro de 2017) do simpósio ‘Perspetivas por um mundo livre das armas nucleares e pelo desarmamento integral’. Dirigindo-se a cerca de três centenas de participantes (contavam-se entre eles 11 laureados com o Nobel da Paz, representantes da ONU e da NATO, diplomatas da Federação Russa, dos EUA, da Coreia do Sul e do Irão), o Papa afirmou na alocução inaugural: «As armas de destruição maciça, em particular as atómicas, geram unicamente um sentido enganador de segurança e não podem constituir a base da convivência pacífica entre os membros da família humana, que ao contrário deve inspirar-se numa ética de solidariedade. Sob este ponto de vista é insubstituível o testemunho dos Hibakusha, ou seja, as pessoas atingidas pelas explosões de Hiroxima e Nagasáqui [a razão da escolha pelo Papa da fotografia acima reproduzida torna-se assim mais nítida], assim como a das outras vítimas das experiências com armas nucleares: que a sua voz profética seja uma admoestação sobretudo para as novas gerações!».
Note-se ainda que o Vaticano coassinara escassos meses antes (7.7.2017) o ‘Tratado de Proibição de Armas Nucleares’, estabelecido por 122 países sob os auspícios da ONU.
É evidente que a visão religiosa da vida – e não só! a visão humanista, também… – depara com a enormidade da arma nuclear e é assomada de vertigem. Nada nos surge de forma tão clara como a encarnação do Mal. Que um tal poder destruidor possa ser desencadeado pelo gesto mínimo de um dedo – suprema e triste ironia, quando evocamos a ideia sublime de Miguel Ângelo, no centro do teto da Sistina, de representar Adão recebendo o sopro divino da vida através do seu dedo indicador… – coloca as maiores questões éticas, e teológicas, também.
«Quantas divisões tem o Papa?», terá perguntado Estaline ao Ministro dos Negócios Estrangeiros francês Pierre Laval, em 1935. Em boa verdade, continua hoje a não dispor de nenhuma, no seu pequeno território de 44 hectares no meio de Roma. No entanto, a sua voz tem autoridade moral e não só para os mais de mil milhões de fiéis católicos.
Em 1963, a Encíclica de João XXIII ‘Pacem in Terris’ (veja-se especialmente os pontos 109-113) lançou as bases para uma oposição consistente da Igreja Católica à obscenidade da arma nuclear. Publicada meio ano após a Crise dos Mísseis em Cuba (recorde-se que J. F. Kennedy era de confissão católica) e menos de dois meses antes da morte do Papa, esta encíclica está diretamente na origem da instituição por Paulo VI do dia 1 de janeiro de 1968 como primeiro Dia Mundial da Paz. Alguns anos depois, seria reconhecida a influência dos bispos católicos norte-americanos na atenuação progressiva do belicismo de Ronald Reagan ao longo dos oito anos dos seus dois mandatos presidenciais (1981-89). Assim, o recente alerta do Papa Francisco, na ocasião do quinquagésimo primeiro Dia Mundial da Paz, insere-se numa linha consistente da Igreja Católica e deve ser enfaticamente saudado por todos os homens de boa vontade.