Médicos Sem Fronteiras. UE “trata as pessoas como se fossem mercadorias” no acordo com a Turquia

A diretora executiva dos Médicos Sem Fronteiras alerta para o risco da “barbárie” e de um “recuo de vários anos em conquistas civilizacionais” se não se respeitar a ajuda humanitária internacional e o papel das ONG.

Susana de Deus não vê “grandes evoluções” ou “impacto positivo” na vida dos refugiados e migrantes com o acordo que a União Europeia (UE) celebrou com a Turquia em março de 2016. “O acordo faz com que se tratem pessoas como se fossem mercadorias”, denunciou ao i a diretora executiva da organização, aquando da sua visita a Portugal. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) “não estão a querer defender o fim das fronteiras”, mas também não são “ingénuos ao ponto de pensar que o desafio” para a UE “seja fácil de resolver”. No entanto, garantem que não é com “políticas securitárias” e “dificultando a fuga” que se “vai evitar que estas pessoas continuem a morrer”.

Em março de 2016, a União Europeia e a Turquia assinaram um acordo em que a segunda se comprometeu a reduzir o fluxo de migrantes e refugiados em troca de ajuda financeira na ordem dos milhões de euros, da liberalização dos vistos de turismo para cidadãos turcos e da aceleração do processo de adesão ao bloco europeu. Um acordo com o qual os MSF discordam: “Têm de se criar canais seguros e legais para as pessoas chegarem e requererem asilo ou aquilo de que necessitem para ficarem seguras.” Como está, a situação é incomportável porque as pessoas “continuam retidas” e porque a resolução da situação é “lentíssima”. “Assim é que não pode continuar”, assevera. 

Em 2017 morreram 3115 pessoas a tentarem atravessar o Mediterrâneo em embarcações frágeis e, passadas duas semanas do início de 2018, já morreram pelo menos 180, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. “As pessoas têm o direito de fugir e de pedir asilo”, conclui.

Além do acordo, Susana de Deus não vê com bons olhos as reações da UE à crise no Mediterrâneo. “Como europeia, vejo-a com tristeza e, como ser humano, com tristeza. Mesmo não sendo europeia, penso que sentiria o mesmo”, admite. Não se coíbe ainda de denunciar o que considera ser a conivência do projeto europeu “com o que está a acontecer na Líbia, onde as pessoas estão a ser vendidas por 400 dólares”. Entre as declarações de intenções feitas no passado, a especialista mostra-se “chocada” com algo que a UE já sabia que acontecia “há muito tempo”, permitindo que a “guarda costeira líbia retire pessoas do mar que estão a tentar fugir” para as levar de volta para “fábricas de sofrimento no país”, onde hoje se vive “um recuo nos séculos” e os MSF têm “recebido muitas pessoas com ferimentos de tortura”. 

Susana de Deus critica também aqueles que na Europa exploram os números para incutir o medo nas populações, defendendo a existência de uma alegada invasão de estrangeiros. “É quase ridículo o que se diz hoje dos números de pessoas a chegarem à Europa”, afirma. “O Uganda tem mais de um milhão de sul-sudaneses e o Líbano tem um refugiado para cada quatro libaneses”, exemplifica. São dados de um estudo da Amnistia Internacional, de 2016, que defende que os dez países que mais recebem refugiados representam apenas 2,5% do PIB mundial, entre os quais se encontra a Turquia, o único país europeu a figurar na tabela.

MSF pelo mundo

A crise humanitária que se vive nas águas do Mediterrâneo, mas também um pouco por todo o mundo, é a principal razão que levou Susana de Deus a visitar Portugal. Embora o gabinete do Brasil trabalhe a comunicação em língua portuguesa para o resto do mundo, a diretora reconhece que Portugal assume uma crescente importância para a organização – não fosse a relação entre o país e a comunidade de países de língua portuguesa uma mais-valia. 

Apesar de ter 50 portugueses na organização, o principal objetivo para os próximos tempos é “recrutar portugueses para missões humanitárias” para as mais diversas funções. “Existe uma grande necessidade de profissionais de saúde”, admite. “Médicos anestesistas, cirurgiões, traumatologistas e infetologistas. Pessoas que falem inglês e francês”, complementa. Apesar de os conhecimentos técnicos serem fundamentais, um outro critério se destaca: a “vocação para o trabalho humanitário” – um trabalho em que, por vezes, se coloca a vida de outras pessoas acima da própria em locais com conflitos, doenças ou afetados por catástrofes naturais.

Entre os riscos que os elementos dos MSF enfrentam nos mais de 70 países onde a organização tem membros, encontram-se as doenças, os acidentes de viação – por causa das “estradas em condições péssimas” – e riscos de segurança, derivados dos conflitos que assolam essas nações. Contudo, a diretora assegura que a segurança dos elementos da organização não se caracteriza pela leviandade: “Para todos estes riscos de que lhe falei temos protocolos bastante rigorosos.” Qualquer elemento dos MSF não pode preocupar-se apenas consigo próprio, mas também com o conjunto da equipa, pois, caso “viole o protocolo de segurança, ele não só está a colocar-se a si em risco como também à sua equipa”. A principal segurança dos elementos da organização advém da imparcialidade que demonstra no terreno, conversando com “todas as partes”, explicando--lhes “qual a identidade da organização” e que “não está ali para tomar qualquer posição, mas apenas para prestar cuidados médicos à população”.

Por vezes, as conversas não são suficientes para garantir a segurança dos elementos da organização no terreno. “Em 2003 e 2004 perdemos cinco companheiros no Afeganistão, num ataque numa estrada”, diz. E, em 2014, um hospital da organização em Kunduz, também no Afeganistão, foi bombardeado e 30 pessoas perderam a vida, entre as quais 13 profissionais. Nos mais de 40 anos desde a sua fundação, a organização já perdeu vários elementos em missões humanitárias. E hoje parece existir um crescente desrespeito pelo trabalho e vida destes profissionais, levando muitas pessoas a acreditar que os MSF, como outras organizações, estejam a tornar-se um alvo nos teatros de guerra, onde as responsabilidades são difíceis de atribuir. “Nem sempre se consegue identificar quem é que naquele exato momento bombardeou aquele hospital”, admite.
 
Bombardeamento de hospitais

“Nós não somos um alvo”, garante a diretora. Porém, alerta para a “tendência para se desrespeitar a ajuda humanitária”, algo que considera ser “o grande perigo” por os “interesses da guerra” estarem “a ir longe de mais”. Nos últimos três anos, mais de 50 hospitais dos MSF foram atacados, o que leva Susana de Deus a afirmar que, caso nada seja feito, se caminhará para a “barbárie” e para um “recuo de vários anos em conquistas civilizacionais” em que a violação das Convenções de Genebra, criadas para proteger civis e instalações médicas não combatentes de ataques, se destaca.
“Podemos recuar na nossa humanidade e na forma como damos valor à vida humana”, diz. Ainda não “existe um recuo civilizacional porque as leis não foram revogadas, mas as práticas estão extremamente perigosas”, assegura. “É um descalabro na área dos direitos humanos.” Preferindo não escolher culpados, garante que “não se pode dizer que os representantes dos países do Conselho de Segurança, que estão envolvidos nesses conflitos, desconheçam o direito internacional humanitário”. 

O caso da Síria, que desde 2011 sofre uma brutal guerra civil com várias intervenções estrangeiras, é um exemplo. O conflito já fez mais de 340 mil mortos, entre os quais 102 mil civis, e obrigou à fuga interna e para o exterior de mais de 11 milhões de pessoas. Neste conflito, os MSF têm tido uma “presença mista”, ora operando diretamente em alguns locais, ora apoiando outras organizações que já se encontram no terreno. Só em 2015, e segundo um relatório da organização, mais de 63 hospitais dos MSF foram bombardeados na Síria. Também nesta questão, a diretora executiva preferiu não apontar dedos: “Existem várias forças na Síria e todas as que lá estão conhecem o direito internacional humanitário e, portanto, sabem o que estão a fazer”. E garante que, “na generalidade, os hospitais dos MSF são conhecidos por estas forças”. 

Para além dos danos e mortes que causam, os bombardeamentos de hospitais também têm um profundo efeito junto das populações locais. “Um dos grandes problemas que temos na Síria é que a população deixou de ir aos hospitais por ter medo de ser bombardeada”, revela. Os pacientes continuam a receber tratamento, mas permanecem o menor tempo possível nas instalações, mesmo quando isso é prejudicial para o seu estado clínico.