As retroescavadoras voltaram ao Bairro 6 de Maio na manhã de ontem para demolirem mais casas. Há meses que não eram vistas pelas redondezas, mas nem por isso deixaram de ser temidas pelos moradores, num braço-de-ferro com a autarquia que dura há mais de dois anos.
Antes de ontem, vários residentes do bairro encontraram colados nas portas de suas casas avisos a anunciar aos “moradores desta construção que a mesma vai ser demolida de imediato pelo que deverão retirar tudo o que possuem no seu interior”, sem que contivesse qualquer data ou assinatura, remetendo apenas para a Câmara Municipal da Amadora e Polícia Municipal.
“Estava no trabalho quando os meus colegas me alertaram, a dizer que os avisos de despejos tinham chegado ao bairro. Quando cheguei a casa vi o papel colado na porta”, contou ao i Aliu Sané, de 40 anos e armador de ferro de profissão. Vive no bairro desde que chegou a Portugal, em 1999, da Guiné-Bissau, e hoje é cidadão português. Relato semelhante tem António Sanhá, de 68 anos e reformado da construção civil: “Colaram um papel na porta e disseram-me que tinha de sair logo. Perguntei para onde iria e não me responderam.”
“Agora não estão cá, mas quando sair podem voltar.” É assim que António Sanhá resume o clima de medo que tem vivido nos últimos meses – um sentimento que parece ser generalizado entre os moradores do bairro, a que também se soma a vergonha. “Estou com medo e vergonha de ficar sem casa. Vergonha por saber que a minha casa está nas televisões do país”, admite Sané.
Para Deolinda Martin, vereadora sem pelouro da câmara, “há várias ilegalidades cometidas nos processos das demolições”, entre os quais se encontram os avisos. “Estão colocados e afixados sem data e sem assunção de responsabilidades.” Os habitantes do bairro, explica a vereadora, não receberam quaisquer informações para sua proteção – uma realidade em que Sanhá e Sané são mais dois casos em tantos outros.
Não se pense que são irredutíveis na ideia de permanecer nas casas. “Arranjem-me uma casa que vou para lá. Disseram-me que não podiam arranjar [autoridade camarária]. Não me deram alternativa”, diz António. O morador admite que se encontra numa “situação complicada” por não conseguir arranjar uma casa com os 300 euros da sua pensão, por os preços do mercado de arrendamento terem subido nos últimos anos.
Resistir a todo o custo
Pelas primeiras horas de ontem, quando ativistas da Associação Habita e outros independentes chegaram ao bairro para impedir as demolições, depararam-se com Sanhá a descer as escadas com os seus poucos bens em malas que rapidamente foram colocadas num espaço onde a lama não lhes pudesse tocar. Uma retroescavadora estava já posicionada para encetar os seus golpes contra as paredes da casa; trabalhadores da câmara empunhavam marretas e começavam a destruir uma parte da varanda da habitação, sendo guardados, primeiro, por polícias municipais e, depois, por agentes da PSP.
Os agentes alertaram os ativistas para não ultrapassarem a área de segurança, mas foram ignorados. Seguiu-se uma troca de palavras e, perante a defesa do “cumprimento de ordens” das autoridades, os ativistas recusaram-se a abandonar o local. Seguiram-se os avisos do chefe da Polícia Municipal: “Vocês vão ter de sair, se não saírem vamos ter de usar a força” e “vim fazer um trabalho e vou fazê-lo”. No final, os ativistas conseguiram levar as autoridades a recuar e a terem de voltar noutro dia. “Vamos embora. Por hoje”, disse ao i um polícia.
O i apurou que, numa das casas adjacentes à que iria ser demolida, e dentro da zona de segurança estabelecida, se encontravam oito pessoas: duas mulheres adultas e seis crianças, a mais nova com oito anos e a mais velha de 16.
Hoje, o bairro é uma miragem do que foi outrora, quando o horizonte era composto por inúmeras casas precárias. Por cada casa de pé, duas ou mais estão destruídas em seu redor, diz quem permanece. Entulho e lixo enchem o chão. Se antes viviam três mil pessoas no bairro, hoje restam entre 35 e 40 famílias, não incluídas no Programa Especial de Realojamento (PER), segundo os moradores.
Pressionados para sair
Quando uma das casas está para ser demolida, técnicos dirigem-se ao local para cortarem a luz e a água e, por vezes, cortam também às casas contíguas, atitudes que os moradores consideram serem pressões indevidas para os levarem a abandonar as casas. Os cortes podem manter-se tanto por dias como por meses. Há também relatos de que os técnicos deixam “os fios [elétricos] à mostra sem qualquer segurança”, num bairro com crianças em número significativo. “Houve até um pequeno incêndio quando um poste elétrico rebentou por os fios não estarem bem ligados”, denunciaram moradores. “Apanhámos cá um susto”, admitem alguns.
“Estas demolições são uma clara violação de direitos humanos das pessoas que aqui vivem e que não têm nenhuma alternativa de habitação”, afirmou ontem Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, que se juntou aos ativistas. “São muitas vezes pessoas idosas e com problemas de saúde, e até crianças.”
Parada a demolição, alguns ativistas mantiveram-se perto da casa, mas outros dirigiram-se para a Câmara da Amadora a fim de falarem com a presidente, Carla Tavares. Esta aceitou receber uma delegação composta por Pedro Soares, deputado bloquista e membro da comissão parlamentar da Habitação, Deolinda Martin, Mariana Mortágua e Ricardo Gouveia, deputado municipal do mesmo partido.
Contactada pelo i, a autarca recusou prestar declarações. Porém, depois da reunião, Pedro Soares disse ao i que a presidente não se comprometeu a travar as demolições, mas pediu aos moradores e ativistas que redigissem uma lista do conjunto de casos que não têm alternativa habitacional. “Dentro de uma relação de boa-fé, é evidente que a câmara não avançará com os despejos sem antes ter recebido essa lista e sem uma resposta”, disse Soares.
A Câmara da Amadora pretende demolir todo o bairro até inícios de março. Ao que o i conseguiu apurar, a pressa deve-se a um projeto urbanístico previsto para os terrenos ocupados pelo bairro, a que se soma o programa de nova geração de políticas de habitação que a secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, pretende apresentar no parlamento até março – políticas que obrigarão a uma postura de habitação oposta à que a câmara tem seguido.
Esta terça-feira, a comissão parlamentar da Habitação votou por unanimidade o pedido de presença da secretária de Estado para prestar declarações sobre políticas de habitação.
Ontem, Sanhá e Sané mantiveram as suas casas, mas ninguém sabe até quando. “São vidas na rua”, resumiu um morador ao passar, ontem de manhã, em frente à casa de Sanhá.