Dois de julho de 1994. O dia em que a Colômbia passou a ser um país a evitar aos olhos da opinião internacional. O dia em que Andrés Escobar Saldarriaga foi assassinado com seis tiros à queima-roupa por causa de um auto-golo. Um lance de pura infelicidade, que acabou por atirar a Colômbia para fora do Mundial dos Estados Unidos logo na segunda ronda da fase de grupos e viria a ditar o fim da vida do ‘Cavalheiro do Futebol’.
Passados quase 24 anos, o tema voltou à agenda noticiosa devido à captura, por parte das autoridades colombianas, de Juan Santiago Gallón Henao, um dos presumíveis mandantes do assassinato do antigo defesa-central. Henao, juntamente com o seu irmão Pedro, foi um dos homens que se dirigiram a Escobar no famigerado dia 2 de julho de 1994 com insultos e ameaças, no parque de estacionamento de uma discoteca em Medellín. Pouco depois, o motorista dos irmãos, Humberto Muñoz Castro, fez os seis disparos contra o defesa, que viria a falecer no hospital aos 27 anos, apenas dez dias depois do maldito golo na própria baliza.
Juan Santiago Gallón Henao foi detido logo em 1995, por implicação no assassinato de Escobar, mas acabaria por ser libertado por falta de provas – ao contrário do motorista, condenado a 43 anos de prisão, dos quais só cumpriu 11, tendo sido libertado em 2005 por bom comportamento. Conhecido barão da droga no seu país, Henao viria a ser condenado em 2009 a três anos e três meses de prisão depois de admitir ter financiado um grupo de 300 paramilitares. Estava em fuga há quatro meses, desde que foi notificado do pedido de extradição de um tribunal de Nova Iorque, por tráfico de drogas; foi agora apanhado em Cúcuta, junto à fronteira com a Venezuela, no âmbito de uma investigação sobre tráfico de droga para a Europa.
O cavalheiro do futebol
Mais de 23 anos se passaram sobre o hediondo crime e as verdadeiras razões continuam por explicar. É certo que, na década de 90, a criminalidade violenta na Colômbia atingiu níveis difíceis de quantificar, com o outro Escobar (Pablo), agora imortalizado nos ecrãs pela série Narcos, na linha da frente de tudo o que envolvesse drogas, cartéis, tortura e homicídios.
Não foi, porém, Pablo a estar por trás do assassinato de Andrés. O barão da droga havia sido assassinado a 2 de dezembro de 1993, precisamente sete meses antes do jogador. Há quem diga, até, que Andrés nunca teria sido morto se Pablo estivesse vivo, devido ao amor incondicional do narcotraficante pela seleção nacional e respetivos craques.
Andrés Escobar foi um dos grandes jogadores do Atlético Nacional, um dos clubes com mais apoiantes na Colômbia, com o qual conquistou a Taça Libertadores em 1989 e o campeonato em 1991. Rapidamente se tornou referência também na seleção, sendo titular indiscutível nas Copas Américas 1989 e 1991 e no Mundial 90, e foi com esse estatuto que partiu para o Campeonato do Mundo de 1994. Alto, esguio, imponente, leal e de grande qualidade técnica, era apelidado de ‘Cavalheiro do Futebol’ pelo estilo de jogo, mas também pela personalidade e comportamento fora do campo.
Naquela altura, o futebol representava uma válvula de escape para a população colombiana, que só queria desviar o pensamento das barbaridades perpetradas pelos carteis de droga. Andrés Escobar servia-se do seu estatuto para ajudar a população carente, sobretudo as crianças: visitava escolas, distribuía presentes nos bairros pobres de Medellín durante o Natal. «Era sensível em toda a extensão da palavra. Tranquilo e sereno, com o seu sorriso de dentes grandes fazia desaparecer num instante qualquer resquício de nervosismo. Este rapaz comprido e forte era a ilusão e a esperança transformadas em homem», disse um dia o jornalista colombiano Rafael Villegas.
Escobar via a seleção como o principal caminho para resgatar o orgulho do povo. A Colômbia era, por esses dias, apontada como uma das favoritas à vitória final. Alguns meses antes, no último jogo do apuramento para a prova, tinha vencido na Argentina por concludentes 5-0 e tinha provavelmente juntos os melhores jogadores da sua história: Freddy Rincón, El Trem Valencia, Faustino Asprilla, Leonel Álvarez ou Carlos Valderrama. O próprio Escobar estava, por esses dias, na lista de tubarões como o Atlético de Madrid ou o AC Milan de Fabio Capello, que preparava uma choruda proposta para o juntar a um elenco de luxo que se tinha sagrado campeão europeu dias antes da competição nos Estados Unidos.
O primo de toda a cidade
Tudo se começou a desmoronar, todavia, logo no primeiro jogo, com a derrota diante da Roménia (1-3). A Colômbia ficava obrigada a vencer os anfitriões para poder manter vivas as aspirações em chegar aos oitavos-de-final, mas logo aos 35 minutos, numa tentativa de impedir que a bola chegasse a um avançado norte-americano, Escobar acabou por cortar para a sua própria baliza, traindo o guardião Óscar Córdoba. Earnie Stewart aumentaria a vantagem para os Estados Unidos aos 52’, de nada valendo o golo de Valencia em cima do apito final.
Os cafeteros ainda venceram a Suíça na última ronda (2-0), mas esse seria mesmo o seu derradeiro jogo no Mundial. E na vida de Andrés, visto no seu país como o principal responsável pelo fracasso da seleção – ao contrário do que havia acontecido, por exemplo, em 1990 com o excêntrico guarda-redes René Higuita, que basicamente ofereceu a passagem para os quartos-de-final aos Camarões. Durante o Mundial 94, Escobar assinava uma coluna no jornal El Tiempo; uma espécie de diário, onde relatava o ambiente vivido no seio da equipa. O seu último texto, datado de 29 de junho, acabou assim: «Até logo, porque a vida não termina aqui.» Para ele, infelizmente, viria a terminar três dias depois.
O autor dos disparos garante que o fez em consequência de uma discussão motivada por divergências de opinião sobre futebol. A teoria mais defendida na Colômbia, todavia, é a de que o crime se deveu a consideráveis perdas financeiras dos narcotraficantes, que teriam apostado em força no sucesso da seleção colombiana na prova.
Pagou Andrés Escobar com a vida, a cinco meses de casar com a namorada de juventude, a dentista Pamela Cascardo. O menino nascido em Medellín, que já tinha perdido a mãe e um dos cinco irmãos, tornou-se um símbolo da violência e do caos que grassava nas ruas da Colômbia nos anos 90. Ao funeral compareceram mais de 100 mil pessoas – entre os quais o então presidente do país, César Gaviria Trujillo.
Desde 2002, uma estátua em sua homenagem está erigida na sua cidade natal, onde a adoração a Escobar é nítida a cada esquina. A sua cara está nos muros da cidade, em bandeiras no estádio do Atlético Nacional ou tatuada na cara dos adeptos do clube onde se tornou ídolo eterno e que já foi duas vezes campeão sob a orientação do seu irmão Santiago. «Apesar da aparente devoção, Andrés não é considerado um santo. Mais que um ser divino, preferem pensar nele como um amigo que os acompanha ao estádio. No entanto, ao redor de sua figura ocorre um fenómeno psicológico considerável: Escobar também serve como fator de coesão. Ao menos em Medellín, o seu caso é próximo, dói a todos. É, por assim dizer, uma espécie de primo coletivo na cidade, onde cada um tem o drama de um parente vinculado a uma tragédia com balas. Daí o culto permanente à sua imagem e presença», refere o jornalista Esteban Duperly.
Andrés Escobar deixou por cumprir o sonho de criar um projeto social para crianças em Medellín. O ‘Andrés Escobar Project’ acabou por se tornar realidade pela mão do seu pai, que fundou escolas de futebol pelos vários bairros da cidade para dar a crianças carenciadas a possibilidade de praticar o desporto-rei no país. E perpetuar a memória do ‘Cavalheiro do Futebol’ no país que ainda hoje chora a sua perda.