Woody Allen é agora o inimigo público

No filme de 1969, Virgil Starkwell, personagem escrito por Woody Allen para ser interpretado por si próprio, não consegue – lamenta o narrador –  a proeza de entrar para a lista dos mais procurados pelo FBI, mas recebe e distinção de “gangster do ano”. Na vida real e no tempo do #MeToo, Allen não será…

O timing não poderia ser pior do que este. Em finais de outubro, com o movimento #MeToo a ganhar forma e força depois da queda de um dos homens mais poderosos de Hollywood, Harvey Weinstein ao fim de alegadas décadas de abusos de poder com um incontável número de atrizes, começavam a circular rumores de que “A Rainy Day in New York”, o próximo filme de Woody Allen, rodado em Nova Iorque durante o último verão com Elle Fanning, Jude Law, Selena Gomez, Rebecca Hall e Timothée Chalamet (estrela do aclamadíssimo “Call Me By Your Name” de Luca Guadagnino), seria filme para uma nova polémica.

Noticiava então o “Page Six”, do “New York Post”, que no filme Law interpretava um homem casado de meia idade que se envolve numa relação de contornos sexuais com uma jovem de 15 anos, interpretada por Fanning.

Escrito e rodado num tempo que não era ainda este, planeado para estrear num ano que Woody Allen não poderia prever ser o do #MeToo, “A Rainy Day in New York” pode mesmo, segundo as notícias dos últimos dias, não chegar a ver a luz do dia. Isto porque, entre o movimento de solidariedade com as vítimas de assédio e de abusos sexuais que atirou já ao chão dos seus pedestais homens como Harvey Weinstein, Kevin Spacey, Louis C.K., Brett Ratner ou James Toback, Dylan Farrow, a filha adotiva do realizador com a atriz Mia Farrow, que ao longo dos 25 anos pelos quais se arrastou o escândalo dos alegados abusos de que foi vítima, concedeu há dias a sua primeira entrevista televisiva.

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 Gayle King, no “This Morning” da CBS, Dylan mantém as alegações que Mia Farrow tornou públicas na década de 1990, durante a batalha judicial pela custódia da filha com Woody Allen. E, confrontada com as respostas do realizador – que, como na época, continua a negar que abusou de Dylan, que considera vítima de uma “lavagem cerebral” da mãe – respondeu, indignada: “O que não compreendo é como é que esta história louca sobre eu ter sido vítima de uma lavagem cerebral é mais credível do que eu ter sido abusada pelo meu pai”. Declarações que nada tiveram de diferente do que tinha já escrito na carta aberta que em 2014 publicou no blogue de um colunista do “New York Times” ou do que tinha dito à “Vanity Fair” um ano antes, quando pela primeira vez comentou à imprensa o caso, mas que a conjuntura fez com que Hollywood acolhesse como nunca antes.

Também ele poderá cair? Com a lista de atores e atrizes que integraram os elencos das já cinco dezenas de filmes assinados por Woody Allen e que agora se mostram arrependidos a não parar de crescer a cada dia – Greta Gerwig, David Krumholtz, Ellen Page, Griffin Newman, Timothée Chalamet, Rebecca Hall, Joaquin Phoenix, Mira Sorvino, Rachel Brosnahan, Natalie Portman, Chloë Sevigny têm sido os mais citados – em Oviedo, onde há quase dez anos foi rodada parte de “Vicky Cristina Barcelona”, pede-se agora a remoção da estátua erguida ao realizador.

E com boa parte do elenco de “A Rainy Day in New York”, em fase de pós-produção e com estreia prevista para este ano, a desculpar-se publicamente pela participação no filme e a anunciar a doação dos salários para o Time’s Up e associações de apoio a vítimas de crimes sexuais, começaram a surgir, ao longo dos últimos dias, rumores sobre a possibilidade de o filme não chegar sequer a estrear, que o silêncio da Amazon perante a imprensa só vieram adensar. No Twitter, Dylan Farrow diz sentir-se pela primeira vez ouvida, agradecendo às “muitas corajosas mulheres” que tomaram uma posição a favor dela ao longo dos últimos dias. “Quero agradecer a sua integridade, a sua coragem, e o exemplo que estão a dar para um novo caminho daqui para a frente.” Sinal de que desta vez algo poderá mudar para Woody Allen?

Com a carreira duas vezes ameaçada pelas alegações de que terá abusado sexualmente de Dylan quando tinha apenas 7 anos – a primeira quando o escândalo rebentou, nos primeiros anos da década de 1990, e a segunda em 2014, aquando da publicação da carta aberta no “New York Times”, Woody Allen – uma das primeiras vozes que depois do escândalo em torno de Weinstein se levantaram contra o que poderia vir a tornar-se numa “caça às bruxas” em Hollywood – estará agora numa posição mais fragilizada do que alguma vez esteve.

É o que defende, numa extensa troca de emails com o i, o académico e autor norte-americano Joe McElhaney, doutorado em Estudos de Cinema e professor no Hunter College de Nova Iorque. Desde o escândalo em que se viu envolvido na década de 1990, Woody Allen estretou dezenas de filmes, além de uma série televisiva de seis episódios, em 2016 (“Crisis in Six Scenes”) e foi distinguido com vários prémios de carreira – além de um Óscar por “Meia-Noite em Paris”, em 2012. Mas tudo poderá ter-se transformado da noite para o dia num privilégio de um outro tempo, segundo a leitura de McElhaney dos acontecimentos dos últimos dias.

“A carreira de Woody Allen parece estar agora de facto em risco, e de uma forma que não esteve nem em 1992 nem em 2014”, comenta ao i, perante a associação de Dylan e Mia Farrow ao movimento #MeToo. “Que forma melhor de destruir o Woody Allen do que retirar-lhe o seu direito a trabalhar, a fazer filmes? Praticamente da noite para o dia, passou a estar fora de moda fazer um filme com o Woody Allen. E, tendo feito, então tornou-se imperativo expressar arrependimento abraçando [a causa de] Dylan Farrow via Twitter ou outra rede social”, analisa o académico especialista em cinema americano que vê neste recente gesto coletivo uma derradeira “nova forma de elevação moral”, que critica como uma “conduta algo chocante e bastante perturbadora por tão repentina, com o frenesi que a rodeia”.

Até porque, sustenta McElhaney, nenhum dos atores que agora procuram demarcar-se de Woody Allen tem apontado ao realizador qualquer espécie de “conduta ou prática no seu trabalho” que permita “estabelecer alguma ligação aos casos de assédio ou de abusos que geraram o #MeToo e o #TimesUP”. Confusão que no seu entender se torna mais grave por Woody Allen não ser, ao contrário de Weinstein ou de outros, um homem de verdadeiro poder em Hollywood. E, ao contrário do que escreveu Farrow no Twitter, McElhaney não vê nenhuma espécie de ato de coragem aqui. “É muito fácil para estes atores virem denunciá-lo. Não é um ato de coragem. É a moda, é a coisa a fazer, com nada a perder pelo caminho.” E termina explicando porquê: “Allen não tem grande influência ou poder em Hollywood e eles sabem disso. É um homem de 82 anos que, ao que se sabe, está bem de saúde e quer continuar a fazer filmes. O Manoel de Oliveira fez filmes até depois dos 100 anos. Talvez se Woody Allen se mudasse para Portugal pudesse ter a sua carreira de volta”.