E agora é tarde, Vanessa é morta. Morreu, não se lembra de quê, mas conseguiu ver tudo o que se passou a seguir. O seu cadáver foi descoberto pelo filho mais velho, que tinha passado lá por casa para buscar um sobretudo que tinha deixado em casa da mãe – e que com estas baixas temperaturas, ainda que intermitentes, lhe tem feito falta.
Ao ver a mãe caída na sala, coração parado, o Bernardo deu um grito.
– A mãe morreu.
Telefonou aos irmãos, ao pai, aos pais dos irmãos, aos avós. Esteve meia-hora ao telefone e, quando acabou, o que lhe veio à cabeça era que tinha ficado com uma dor aguda na orelha.
Foi isso que disse ao irmão do meio quando, passada meia-hora, ele chegou.
– Tenho a orelha vermelha.
O irmão choramingava. Queixou-se que também tinha qualquer coisa vermelha: eram os olhos que lhe ardiam.
– Como é que isto foi acontecer? A mãe não estava doente, pois não?
– Que eu soubesse não. Mas sabes como era a mãe. Sempre foi uma maluca.
A ideia de que a mãe sempre tinha sido uma ‘maluca’ consolou um bocado o Joãozinho, o filho do meio, que fez nos seus circuitos neuronais uma associação rápida entre ‘maluca’ e ‘feliz’.
– Ao menos isso.
O Toninho, o filho mais novo, apareceu pouco depois com o pai, que tinha sido o terceiro ex-marido da Vanessa, e que mal cruzou a porta da casa começou a falar muito depressa:
– Fogo! Tenho imensa pena da vossa mãe! Mas, fogo, eu sempre disse que ela ia acabar assim! Fartei-me de a avisar! Agora não se queixe!
O Toninho teve uma súbita vergonha do pai mas, com o cadáver da mãe ali ao lado, achou que devia ficar calado. O pai era o maluco que lhe sobrava.
Depois chegou o Júlio, o primeiro ex-marido da Vanessa, pai do Bernardo.
– Agora não é altura de choradeiras, avisou.
A ordem era um bocado inútil porque não estava ninguém a chorar, e até os olhos do Toninho estavam menos vermelhos, mas o Júlio gostava de pôr aquele ar de chefe de família de antanho.
– A urgência agora é tratar das coisas. E avisar mais pessoas. Já percebi que até agora vocês não fizeram nada, pois não? É o costume. Nunca nenhum de vocês soube lidar com situações difíceis. Nem vocês nem ela! Eu estava mesmo à espera de ver que isto acontecia!
E apontava para o cadáver.
– Vou fazer uma lista das pessoas a quem se tem mesmo que avisar. Ó Bernardo, vai-me fazer café! E sumo de laranja! Mal tomei o pequeno-almoço e daqui a bocado caio para o lado.
O Bernardo foi à cozinha e concluiu que não havia laranjas. Nem café.
– Nunca há nada nesta casa! – berrou o Júlio – vocês desculpem-me mas eu vou mas é ali abaixo ao café. Não vou conseguir tratar das coisas enquanto não tomar o pequeno-almoço.
Depois tocaram à campainha. Era a Catarina, a nova namorada do Zé, o terceiro ex-marido da Vanessa.
– Oláááá!!! Vim para ajudar. Não vamos agora falar de coisas tristes. Temos que nos animar. Estou a pensar em fazer um bolo.
– Não deve haver farinha nem fermento, respondeu o Bernardo baixinho.
E foi aqui que a Vanessa acordou, atordoada. Afinal, não tinha morrido. Era só um pesadelo daqueles da meia-idade que têm imensa coisa em comum com os infantis. Antes de se levantar da cama pôs-se a pensar se o seu post-mortem correria o risco de ser realmente assim. Deveria deixar escrito que queria que os seus três ex-maridos fossem proibidos de aparecer no seu funeral?