É a mais abrangente retrospetiva da obra de um artista português que deixou marcos num «imponderável percurso de além-tréguas», um autodidata que, ao longo de quatro décadas, esquissou, pintou, escreveu, sem deixar grandes certezas, como quem não tivesse outro intuito que fazer a travessia do «deserto sem nexo, tal como surge metaforicamente sentido». São mais de 290 as obras que integram a exposição Álvaro Lapa: No tempo todo, que inaugurou esta quinta-feira e estará patente em Serralves até 20 de maio.
Mais de uma década passou sobre o desaparecimento do artista que, nascido em Évora, em 1939, viria a estabelecer-se no Porto como professor da Escola Superior de Belas-Artes, em 1976. Ali, e ao longo das duas décadas seguintes, tornou-se uma referência para sucessivas gerações de artistas que ajudou a formar e que inspirou, alcançando reconhecimento enquanto pintor, enquanto a sua prática artística se furtava à «sobrecadência de algum meio-dia já percorrido», para desenvolver uma enérgica reflexão em diálogo com outros artistas e escritores.
O comissário da exposição, Miguel von Hafe Pérez, assinalou o facto de, não sendo a primeira grande exposição dedicada ao artista, ser a primeira feita sem a sua colaboração, o que alargou o campo de possibilidades no que toca a desbravar novos rumos numa obra que «envolve a luz, a distância e a mortalidade consumada do caminhante». Como o comissário disse ao jornal Público, Álvaro Lapa foi «o artista que melhor reflectiu a esquizofrenia de um país no estertor da ditadura e que viria a viver a energia libertária da revolução. Poucos como ele, conseguiram tão rapidamente identificar o quanto essa utopia estava a ser dilacerada». E adiantou que esta é uma ideia que foi formando enquanto trabalhava na exposição, acreditando, por isso, que a mostra será um bom reflexo de uma obra que, em certas séries, «cristaliza um momento depressivo não só pessoal, mas também dessa cova que seria o país».
Reivindicando o seu percurso como o de um dos mais enigmáticos e instigantes artistas portugueses do século XX, esta retrospetiva mostra bem o fosso que persiste no reconhecimento do contributo de Lapa para a arte contemporânea se comparado com aquele que tem no campo literário, onde livros como "Raso como o Chão" (1977) e "Porque morreu Eanes" (1978) continuam seres excêntricos, obras que chocam com uma zona artística conservadora, e que anda a reboque do resto.