Dos 86 militares e civis que lesaram o Estado português em, pelo menos, 2,5 milhões de euros – através de um esquema de sobrefaturação por parte de várias messes da Força Aérea – 68 seguem para julgamento. Foi este o resultado da decisão lida ontem pelo juiz de instrução Ivo Rosa. Até aqui, onze militares continuavam em prisão preventiva e outros sete em prisão domiciliária. Agora, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) decretou que todos os arguidos da Operação Zeus ficam em liberdade, mantendo-os com Termo de Identidade e Residência (TIR).
O juiz decidiu também deixar cair dois dos quatro crimes dos quais os arguidos eram acusados: associação criminosa e falsidade informática. O tribunal considerou que, em relação ao primeiro crime, os arguidos deram continuidade a algo que já existia por si só. “Não se verifica o menor sinal de vontade coletiva e do respetivo processo de formação e afirmação, fundamentais à existência de uma associação criminosa”, refere o despacho da decisão instrutória, a que o i teve acesso.
Quanto ao crime de falsidade informática, o tribunal considerou que a distorção já se verificava nas faturas usadas neste esquema e não na sua inserção no sistema: “A inserção dessas faturas, alegadamente falsas, no sistema informático constitui um meio necessário à obtenção dos pagamentos em causa e não um fim em si mesmo, dado que essa actividade de inserção em nada acrescenta aos documentos de suporte. Esses documentos (faturas) previamente elaborados já se encontravam distorcidos da realidade aquando da sua emissão pelos respetivos fornecedores o que indicia a prática de um crime de falsificação de documento”, lê-se no documento.
A decisão de alterar as medidas de coação de prisão preventiva ou domiciliária para TIR também está relacionada com a alteração dos crimes dos quais os arguidos são acusados: foi considerado que a gravidade dos crimes diminuiu, não existindo também o perigo de perturbação de inquérito ou de fuga. “Não será o mero clamor público ou repercussão que um determinado caso tem na opinião pública, na comunicação ou nas redes sociais que poderá ser utilizado como fundamento para afirmar a existência de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas”, frisa o despacho.
Os 68 arguidos que seguem para julgamento, que vai decorrer no Tribunal de Sintra, vão responder por corrupção passiva (militares), corrupção ativa (fornecedores) e falsificação de documentos.
Uma vida de luxo O esquema de sobrefaturação abrangia tudo: pão integral, batatas, favas, couve roxa, maçãs, limões, qualquer alimento podia ser ‘alvo’ de faturas sobrevalorizadas. Mas, para além do dinheiro que recebiam através deste processo, os militares conseguiam ter uma vida de luxo, com direito a férias, a cabazes de natal bem recheados e a compras para a casa ‘gratuitas’. A “conta-corrente”, por exemplo, era uma das manobras a que recorriam para proveito próprio. Este esquema permitia aos militares adquirirem alimentos que não estavam incluídos no concurso público, como “bebidas alcoólicas, camarão, carne de valor superior”, refere a acusação do Ministério Público (MP), a que o i teve acesso. Esta era uma forma de os fornecedores conseguirem agradar aos militares: além de, no imediato, ganharem mais dinheiro com este esquema, tinham interesse em manter a parceria no futuro. Por isso, era frequente oferecerem estes ‘mimos’ às messes.
Mas as ofertas não ficavam por aqui: as empresas costumavam entregar a vários membros das messes cabazes que costumavam vir recheados com garrafas de champanhe, vinho e espumante, bem como azeite, chocolates, camarão, entre outros produtos.
Por vezes, as oferendas iam além dos alimentos: o sargento José Alves, responsável pelas encomendas da base aérea da Ota, chegou a passar férias numa casa em Vila Nova de Mil Fontes, em Odemira, que era propriedade do dono de uma das empresas fornecedoras; no dia das buscas realizadas pela Polícia Judiciária (PJ) na Unidade de Apoio de Lisboa (Monsanto), as autoridades encontraram no escritório do sargento Vítor Lourenço, um dos homens envolvidos no esquema, “um cartão da Makro para utilização nesta loja que tinha como cliente a Doce Cabaz”, um dos fornecedores.
O esquema durava há tanto tempo que parecia inabalável e os arguidos começaram a sentir-se cada vez mais à vontade com o que faziam. Segundo o MP, o capitão Carlos Dias, que passou da DAT para a Base Aérea nº 1, em Pêro Pinheiro (Sintra) estando sempre a par do esquema, usou o seu e-mail profissional para fazer encomendas a um dos fornecedores, como se tratassem de bens para o Estado, que seriam faturados à Força Aérea. “Tal pedido incluía detergente de roupa, detergente de loiça, gel de banho para adultos e crianças, pasta de dentes para adultos e crianças, material de limpeza, cereais, sumos, leite, massas, entre outros produtos”, refere o MP.
Um grande almoço para Marcelo Os alimentos sobrefaturados eram também utilizados em eventos oficiais ou privados – as messes apresentavam pedidos de “regularização de stock”, que eram posteriormente aprovados pela DAT. Assim, o dinheiro do erário público era justificado com a existência de um evento especial e usado para fornecer festas privadas, como almoços com administradores da Toyota Lexus.
Até um almoço com o Presidente da República foi incluído neste esquema: de acordo com a acusação, tratou-se de uma visita de Marcelo Rebelo de Sousa à Base Aérea nº 5, em Monte Real.
“No dia 31 de agosto de 2016, pelas 11h44, Jorge Gonçalves [um dos homens responsáveis pelo contacto com os fornecedores e a DAT na messe de Monte Real] enviou um email para a DAT a solicitar o fornecimento de refeição especial, por ocasião da visita à Unidade do Sr. Presidente da República, no dia 2 de setembro de 2016, inflacionando o número de participantes de 40 pessoas para 56 pessoas”, lê-se na acusação.
O pânico durante as buscas A 3 de novembro de 2016, cerca de 400 elementos da PJ, PJ Militar, Unidade de Perícia Financeira e Contabilística e da Unidade de Tecnologia e Informação da PJ realizaram buscas nas instalações da Força Aérea e 80 buscas domiciliárias. Nesse dia, os arguidos fizeram vários telefonemas: um deles, realizado por Carlos Dias para a sua mulher, mostra como o capitão tentava eliminar qualquer documento que pudesse provar o seu envolvimento. “Vai a casa com urgência. Vai a casa rápido. Vai, olha as notícias…”, terá dito, num “tom de pânico”.
Também o capitão Neves, da Base Aérea nº11, em Beja, mostrou-se muito apreensivo no dia das buscas e pediu ajuda à sua mulher para, segundo o MP, desfazer-se do que poderia incriminá-lo: “Como tu deves calcular, eu preciso que tu arrumes a minha roupa, tá bem? Eu não sei o que é que eles vão fazer, fala ali em detenções… Eu precisava que tu fosses lá a casa e dissesses à Ana que arrumasse a roupa da minha cómoda e da tua última gaveta. Não sei o que é que isto vai dar, mas pelo menos a roupa… Percebes aquilo que eu quero dizer? Eu quero que tu arrumes isso tudo já. Na tua cómoda está uma roupa minha também…Está lá um oleado, eu preciso disso. Guarda isso num sítio qualquer”.
Dinheiro para todos De acordo com o MP, o esquema começou nas patentes mais baixas, mas os responsáveis máximos aperceberam-se do que se estava a passar e, em vez de colocarem um travão e aumentar a fiscalização, decidiram integrar a atividade criminosa, que terá durado entre 2006 e 2016 em muitas messes espalhadas pelo país.
O esquema de sobrefaturação trazia benefícios a vários membros da escala hierárquica, “sem que todos tivessem conhecimento completo do esquema”, para que a cúpula ficasse protegida. Os fornecedores passavam faturas com valores superiores aos que tinham sido entregues nas messes – a diferença entre o valor faturado e o real era depois distribuído entre as empresas fornecedoras e os militares das messes. Mas quando a DAT se apercebeu do que se estava a passar, decidiu “fechar os olhos” e entrar no esquema.
As empresas recebiam o valor que tinham faturado e entregavam posteriormente a parte que cabia aos militares, através de entregas de numerário. Os fornecedores ficavam com uma percentagem variável e os responsáveis das messes e da DAT com outro tanto – esta direção cobrava uma mensalidade às messes, garantindo assim o seu quinhão fixo sem entrar em contacto com as empresas que forneciam os bens alimentares. O capitão Carlos Dias era a ponte entre a DAT e as messes, recebendo o dinheiro mensalmente e entregando-o aos cargos superiores da Direção. Quando o montante chegava ao major-general Milhais Carvalho, este dividia-o com os membros da DAT que estavam envolvidos no esquema. A partir de 2012, Dias é substituído pelo capitão Luís Oliveira, que continuou a executar as funções de “homem de passagem”.