Quando há um ano se mudou com o namorado para a Cidade do Cabo, Aurélie Sousa percebeu que a preocupação em poupar água era comum a todos os que conhecia. “Na África do Sul há muita consciência sobre o consumo e o desperdício é evitado ao máximo”, explica ao i a portuguesa.
Se, há um ano, o gasto por pessoa se ficava pelos cem litros diários, desde janeiro que tudo passou para um outro nível de restrição. Pela cidade há cartazes a dar conta do consumo aconselhado e em algumas casas foi instalado um sistema que controla o gasto de água. Não foi o caso do prédio onde vivem Aurélie e Rui, mas não é por isso que deixam de saber de cor os números que sabem não poder ultrapassar. “Os duches são apenas de 90 segundos, só podemos puxar o autoclismo uma vez por dia e usar a máquina de lavar roupa uma vez por semana”, conta Aurélie. Isto porque esses 90 segundos de água a correr equivalem a 25 litros de água e o autoclismo consome de uma só vez cerca de nove litros.
Não é que haja um fiscal em cada casa. Aliás, Aurélie conta que o facto de, desde criança, ter hábitos de poupança de água a ajuda a ser mais controlada. “No fundo, passa tudo pela consciência de cada um”, admite.
No entanto, e apesar de todos os avisos, ninguém está preparado para o dia em que, ao abrir a torneira, não vai sair nada. Mas a verdade é que esse dia está cada vez mais perto. As autoridades apontam o dia 4 de junho como o “dia zero”, o primeiro em que não haverá água na Cidade do Cabo.
As autoridades sul-africanas declararam esta semana o estado de catástrofe natural em todo o país devido à seca histórica que assola a África do Sul há vários meses.
Água contada Inicialmente, as autoridades tinham apontado o dia 11 de abril como o primeiro em que faltaria água nas torneiras, tendo depois adiado a estimativa para 16 do mesmo mês. Esta semana foi anunciado que esse dia passa a estar marcado para 4 de junho, devido ao esforço da comunidade e, principalmente, graças ao declínio no uso de água para fins agrícolas, uma vez que em muitas produções começaram a ser usadas reservas de água, ao invés de água corrente.
No entanto, as autoridades pediram aos habitantes para, ainda assim, continuarem a cumprir as indicações oficiais, que limitam o uso de água a 50 litros por pessoa.
“Não é fácil, mas há truques para isso”, garante Aurélie. Lá em casa passou a tomar-se banho de dois em dois dias, de maneira a que cada um possa ser de três minutos. “É bom salientar que nesse tempo contado entram aqueles primeiros segundos de água fria.” Mas até essa é aproveitada, com um balde, para poder usar depois. O mesmo acontece com a água da chuva, ainda que até essa seja rara. “Tentei uma vez, mas os poucos minutos de chuva não deram sequer para encher o fundo do alguidar.”
Aurélie abdicou de ter plantas em casa para não gastar água a regá-las, reutiliza a roupa mais do que o habitual para evitar fazer mais máquinas de roupa e passa um guardanapo em cada prato para tirar a maior parte da sujidade e, assim, usar menos água para lavar a loiça. Garrafas no supermercado são tão raras que Aurélie até publicou no Facebook uma fotografia das quatro que conseguiu comprar a semana passada, algo que não acontecia há mais de quatro meses.
Dia zero A seca atual deve-se a dois fenómenos: níveis de precipitação baixos nos últimos dois anos e que foram especialmente escassos entre abril e outubro, os meses durante os quais a chuva tende a ser mais abundante no país. As taxas de pluviosidade na Cidade do Cabo passaram de 500 milímetros em 2014 para 153 no ano passado. Tendo em conta que o fornecimento de água na Cidade do Cabo depende maioritariamente das barragens, ficar dependente de uma chuva que não acontece deixa a cidade em estado crítico.
Além disso, a desigualdade entre classes é ainda uma realidade no país e há, por isso, quem se revolte contra a tentativa de manter o mínimo de condições nas zonas mais turísticas em detrimento de áreas mais pobres e habituadas a controlar a água há vários anos.
Pelo meio interfere ainda uma crise política, uma vez que as autoridades municipais, que são controladas pela Aliança Democrática, na oposição a nível nacional, acusam o governo de falta de investimento para lidar com a falta de água. O partido chegou até a proclamar que o “dia zero” não passa de “uma invenção” dos responsáveis.
Invenção não será, até porque há toda uma comunidade científica a tentar evitar a chegada do dia em que os sistemas de reserva de água caiam para 13,5% da sua capacidade. Será nesse momento que o “dia zero” será declarado e a população só terá acesso a 25 litros de água por dia, caso se dirija a um dos 200 postos de distribuição de água racionada.
Nesse dia, segundo os cálculos de Greg Pillay, que lidera o centro de operações da Cidade do Cabo, a cidade passará a enfrentar quatro problemas: escassez de água, falhas de saneamento, surtos de doenças e o caos devido à concorrência por um recurso que ficará ainda mais escasso. É por isso que Greg, em conjunto com os serviços de emergência, militares e epidemiologistas, está focado em elaborar um plano que, admite, espera nunca vir a pôr em prática.