‘Tenho à vontade 250 mil quilómetros nas pernas’

Num espaço de três dias, Manuel Machado venceu 50 km na Antártida e no Chile. Apesar do feito, o ultramaratonista português lembra que a prova mais dura até ao momento foram os 111km que correu no Deserto do Saara, circuito que concluiu em quase 12 horas com o termómetro a marcar os 40º graus. 

Faz 51 anos no próximo mês de março e se por um lado admite que a idade começa a pesar, por outro também já considera o próximo desafio. Manuel Machado, chefe de cabine da TAP e ultramaratonista, soma sete triunfos nas provas de corrida mais desafiantes e extremas do planeta. Da vitória no Pólo Norte ao êxito no Vale Sagrado dos Incas, só neste mês de fevereiro, num espaço de três dias, o atleta foi o primeiro a cortar a meta ao fim de 50 km na Antártida e no Chile. Em entrevista ao SOL aborda as principais adversidades e rotinas de treinos. Para Machado uma coisa é certa: o triunfo é parte fulcral do processo. É a prova de que quem corre por gosto se cansa, mas continua. O corpo é, aliás, a única autoridade a ditar os limites. Que, até ao momento, parecem não existir para o português.    

Venceu há dias a ‘White Continent 50k’ na Antártida. Quais são os maiores desafios numa prova feita com 20 graus negativos? 

A partir dos 20 minutos começou a nevar e os ventos eram muito fortes. O pior, sem dúvida, foi o frio e o piso, que era um bocadinho cascalho com neve. A partir do quilómetro 5 tornou-se complicado. Mas terminei os 50 quilómetros e continuei a correr. Tive alguns animais e umas focas a virem atrás de mim, mas não houve problema nenhum [risos].

O que fica na memória? A imagem das focas a perseguirem-no? [risos] .

É engraçado. Aqui em Portugal acontece termos cães a correrem atrás de nós, ali eu tinha focas a correrem atrás de mim, achei piada [risos]. Numa prova na África do Sul já tive um crocodilo atrás de mim por isso já é normal uma pessoa distrair-se com estas coisas [risos].

Três dias depois estava a vencer novamente uma prova de 50km, mas no Chile. 

Sim, fiz a prova na Antártida e três dias depois fiz outra no Chile. A base era em Punta Arenas e havia lá uma prova de 50 km, eu fui e ganhei.

Em três dias o corpo consegue recuperar?

Sim, sim. Claro que foi mais díficil devido ao pouco tempo de recuperação. Mas o tempo em que concluí as duas provas foi praticamente igual, dentro das quatro horas e tal.

Qual é o processo de preparação para este tipo de desafios?

Os treinos têm de ser diários e tem de ser por volta de 200 quilómetros por semana. Eu já fiz provas bem mais complicadas do que esta. Quando ganhei os 111 quilómetros no Saara custou-me muito mais.

É mais difícil correr com temperaturas negativas ou com 40 graus?

A do Saara foi mais difícil porque foram 111 quilómetros, tudo seguido. Esta [Antártida] era um circuito de sete voltas. A do Saara, para além de ser no deserto, tem apenas umas bandeiras a cada mil metros para nos orientarmos, mas cada um vai à sua vida. Na Antártida é diferente, não havia qualquer risco de nos perdermos.

Apanhou algum susto no deserto?

Sim, quando vi um esqueleto de um camelo na areia, isso assustou-me. Ficámos ‘epá o que é que se passa aqui?!’.

Alguma vez se perdeu?

Nessa do Saara não, mas houve uma prova que fiz em Huelva [Parque Nacional de Doñana], Espanha, que começou à meia-noite, e aí confesso que andei ali um bocado perdido.

Como é feita a gestão da hidratação numa prova no deserto e com tantos quilómetros para percorrer?

No Saara davam-nos água de dez em dez quilómetros.

Quanto tempo precisou para concluir a prova?

Quase 12 horas, 11h50 minutos.

Este foi o seu sétimo triunfo em ultramaratonas em diferentes continentes. A vitória faz sempre parte do processo?

Sim. Quando vou para estas provas vou para ganhar. Eu podia dizer-lhe: ‘Vou lá para participar que aquilo é muito engraçado’. Não, quando vou para estas provas não vou passear, vou para ganhar, para competir e para dar o máximo! E só vou quando estou em condições, quando não estou nunca vou, não vale a pena. Para isso corria em casa. Quando participo numa prova é a sério, tenho de poder dar o meu máximo, senão não vou!

Quando é que correu a sua primeira maratona?

Faço agora, em março, 51 anos e pratico desporto desde os meus oito ou nove anos por causa do meu irmão mais velho, que me levou para o Badminton, onde fui Campeão Nacional em todas as categorias. Depois, aos 20 anos dediquei-me ao triatlo. Em 1994, depois de fazer o Ironman [3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42,195 m de corrida] deixo o triatlo e começo as corridas. A partir de 2003 começei a participar em maratonas e mini-maratonas.

Alguma vez desistiu?

Já, já. Desisti uma vez em Sevilha devido a uma lesão e também desisti numa ultamaratona de 150 quilómetros nos Estados Unidos. Penso que não desisti mais.

O que se deve fazer quando o corpo começa a pedir para desistir?

O corpo é que manda. Quando diz para pararmos ou para reduzir o treino então temos de reduzir o treino, não há hipótese.

Tem uma ideia de quantos quilómetros já correu? 

Por acaso nunca fiz essa conta [começa a fazer uma estimativa]. É muito quilómetro, é muito.  Ora, por baixo, isto dá entre 8 a 10 mil quilómetros por ano. Por baixo, a correr oito mil por ano dá 80 mil em dez anos, vinte anos são 160 mil e, portanto, trinta anos são 240 mil. Tenho nas pernas à vontade 250 mil quilómetros.

250 mil?!

Pois! Tenho 250 mil quilómetros, à vontade, nas pernas.

É chefe de cabine da TAP. Acha que a sua profissão também é culpada por isto? 

Ajuda. Permite-me treinar em vários climas. Há alturas em que se torna mais complicado, mas fazendo o balanço é mais positivo.

Sente que vê nas maratonas uma forma de libertação por passar muito tempo fechado?

Não sei. Há pessoas que aproveitam as estadias para outras coisas, eu aproveito para correr. Estou sozinho, então corro muito nas estadias todas.

Só lhe falta vencer na Oceânia para fazer o pleno de vitórias em ultramaratonas em todos os continentes. Está no seus planos?

Neste momento conto com os apoios da TAP e  da BP e estou a tentar reunir mais para correr 50km numa prova na Austrália que irá decorrer quando for Verão cá e Inverno lá. 

Nunca pensou competir a nível profissional?

Não, quando comecei já tinha 30 anos, não tinha hipóteses nenhumas de me tornar profissional. Faço isto por prazer, quando deixar de o ser faço outra coisa. Neste momento ainda gosto de correr e sinto-me bem. Enquanto gostar tenho de continuar.

Até quando é que acha que vai estar apto para continuar a correr?

Não sei. É que eu ando a competir com atletas que têm menos vinte anos que eu. Isto já pesa.

Foi homenageado na Assembleia da República por iniciativa do CDS. O que sentiu? 

Achei piada até porque o meu pai era ligado ao CDS.

O que é que a sua família pensa destas aventuras?

Isso têm de ser eles a dizer, mas pensam que isto é um bocado maluquice [risos]. 

Mas apoiam e gostam?

Sim, sim, completamente. Todos. Até o meu pai, que já cá não está, me apoiava nestas macacadas.

Como se consegue conciliar família [duas filhas], profissão e corridas? 

É a minha mulher quem mais sofre com isto tudo. Ela é que atura tudo e que aguenta sempre o barco.