Hélène Veiga Gomes. “A mudança de imagem do bairro deu espaço à procura imobiliária”

A antropóloga é autora de uma tese de doutoramento sobre o Intendente em que conta as histórias de quem viveu a mudança no bairro

O que a levou a fazer esta tese? 

O que me levou a fazer esta investigação foi o facto de eu ter vivido na zona do Intendente há dez anos. E, mais tarde, ter percebido que havia um projeto urbano para mudar o bairro, assinado, mesmo antes de António Costa se mudar para o Largo do Intendente. 

De 2010 a 2014, as datas de início e fim do seu trabalho, quais foram as principais mudanças no bairro? 

Há três dimensões mais importantes nessa mudança: a primeira é nas infraestruturas. O simples facto de terem feito de novo o pavimento no Largo do Intendente, na Rua do Benformoso e na Rua dos Anjos teve um impacto direto não só no tipo de pessoas que circulam, mas também dando-lhes a sensação de estarem num espaço mais atraente, permitindo que não só os habitantes, mas também as pessoas de fora passassem a vir cada vez mais à zona. Isto toca diretamente na segunda dimensão, que é da dimensão dos eventos e dos acontecimentos, uma série de eventos culturais alternando pequenas festas artesanais e associativas e grandes palcos com cabeças-de-cartaz. A escala dos acontecimentos acelerou, aumentou e fez com que o Largo do Intendente na cidade passasse, repentinamente, de uma quase invisibilidade total a um espaço hipervisível. 

E o terceiro eixo de mudança é o imobiliário?

Exatamente, na medida em que a atração por estes eventos e o cenário urbano renovado em que eles acontecem proporcionam uma forte produção visual que participa diretamente da mudança de imagem da cidade, que dá espaço a uma forte procura imobiliária. E este processo faz com que os velhos inquilinos comecem a ser despejados.

O resultado deste plano para mudar o Intendente não foi reanimar o mercado imobiliário e turístico e despejar as populações mais pobres que viviam nesta zona central da cidade?

Talvez não fosse o objetivo em si próprio, mas uma consequência previsível que não foi devidamente considerada. A questão da transformação da cidade é muito complexa, sendo o espaço urbano uma espécie de palco animado por uma série de atores e de forças que mudam de lugar e de direção à medida do tempo.

Mas esta mudança não está muito circunscrita ao largo? Do lado da Rua dos Anjos, as coisas não perecem ter mudado muito, e do lado do Benformoso parece que há uma transformação, mas para passar a ser uma zona de imigrantes.

Temos tendência em centrar o Intendente no largo mas, de facto, tudo é um conjunto mais compósito. Há troços e cantinhos à volta que absorvem e influem sobre a mudança do largo. As ruas do Benformoso e dos Anjos, antes, eram uma só: era o eixo comercial principal desta zona da cidade. Chegou a chamar-se o eixo dos bois e dos burros, traçado organicamente pela água, primeiro, e pelos animais de tração, a seguir. Hoje, elas parecem estar divididas, mas ainda conservam uma dinâmica muito própria.

Porque é que a parte da Rua do Benformoso não foi gentrificada? 

Porque o tratamento político que se fez nela não foi pensado para responder às necessidades de quem já lá estava. Enquanto uma boa parte dos edifícios requalificados no largo estavam antes vazios, a Rua do Benformoso estava ainda muito povoada na altura em que fizeram as obras. Pensou-se que os habitantes e os frequentadores do Benformoso não iam resistir à pressão económica e simbólica, e iam acabar por ir embora. Mas pelo contrário: as redes locais de migrantes eram suficientemente enraizadas para entrarem em resiliência, desenvolverem-se e até estenderem o seu território. Talvez não era o tal como esperado, mas acaba por ser uma onda de empreendedorismo, ainda por cima desenvolvida em continuidade com a história urbana do lugar: memória de uma rua comerciante, de um lado, e, do outro, da história que liga os migrantes e esta zona da cidade. 

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