É Manuela d’Almeida quem nos recebe, da mesma forma que há 40 anos alguém a recebeu naquele espaço que continua seu até hoje. “Tinha 18 anos e estava na fase de procurar um sentido para a minha vida. Sentia que havia um caminho para eu seguir, só ainda não sabia qual”, conta ao i. E foi exatamente na tentativa/erro de marcação desse trilho que um dia foi parar ao número 117 da Rua do Salitre, em Lisboa, e que na altura funcionava como uma espécie de albergue para uma comunidade de apenas 15 budistas.
Hoje em dia são mais de 23 mil portugueses a seguir uma filosofia budista e Manuela figura nessa lista. E é nesse refúgio em pleno centro de Lisboa que se mantém ainda hoje, já não apenas como uma curiosa, mas como instrutora de yoga tibetano e sócia-gerente do restaurante Os Tibetanos.
Parece estranho que num só prédio comunguem coisas aparentemente tão díspares como comida e meditação, mas a verdade é que naquele edifício de três andares é possível alimentar corpo e mente. No primeiro andar funcionam as salas de meditação e ioga, com aulas diárias, e no piso térreo, que se prolonga num pátio nas traseiras, está aberto o restaurante, que se apresenta como o mais antigo vegetariano de Lisboa.
E para que não se comece já a disputa do “mas eu abri primeiro”, Manuela passa a explicar: a “data oficial de abertura é 1978, mas desde 75 que aqui já se serviam pratos vegetarianos, ainda que de forma amadora e, muitas vezes, graças a algo que já não existe hoje em dia, o voluntariado espontâneo”.
O primeiro vegetariano Na Lisboa de há 40 anos, o mais aproximado de comida sem carne e peixe que se podia encontrar era na macrobiótica, onde – espantem-se – Lisboa aparecia no top de cidades com mais opções do género. Talvez por isso, o mote do “primeiro estranha–se, depois entranha-se” não se aplique ao caso d’Os Tibetanos. Desde o primeiro dia de abertura que as filas de curiosos para ver como é que um prato de cogumelos podia substituir um bitoque chegavam ao topo da rua.
Sobreviveu 40 anos na base do boca- -a-boca e dos clientes diários que, já sem olhar para a carta, pedem o menu do dia, numa confiança cega quanto à qualidade. Hoje, longe de ser a única opção vegetariana da cidade, as filas já não sobem a rua, mas não convém ir sem marcação, até porque, além de estar referenciado em praticamente todos os guias turísticos de Lisboa, é, desde 2012, sucessivamente premiado com “1 Garfo” no concurso gastronómico “Lisboa à Prova”, que seleciona os melhores restaurantes da cidade.
Alimentar corpo e mente A música relaxante, o terraço cheio de plantas e as cores quentes da decoração quase fazem esquecer que a Avenida da Liberdade e o caótico Príncipe Real estão ali a dois passos.
Aqui, tudo se conjuga para que até uma vizinhança habituada ao fato e gravata possa usufruir de uma hora de almoço numa outra dimensão, neste caso, em 2145.
Segundo o calendário solar dos tibetanos, o ano novo chegou dia 16 de fevereiro, mas a festa continua por 15 dias. É por isso que, mesmo antes de nos ser apresentada a carta, é posto na mesa um prato de khapse, biscoitos tibetanos feitos especialmente nesta época do ano.
A influência tibetana começou a notar–se na carta do restaurante apenas nos últimos anos. “A génese do restaurante é ser vegetariano”, explica Manuela, até porque alguns dos pratos típicos do Tibete, um país onde os legumes são escassos, têm a carne como protagonista.
Mas se é para falar sobre a ementa, nada como chamar Dawa Tashi que, com a mulher, Phuntsok, orientam uma cozinha que, apesar de internacional, está um pouco mais próxima das suas origens.
Dawa nasceu no Butão, para onde o pai, que era monge, fugiu quando a China ordenou a invasão do Tibete. Acabou por ir viver para a Índia, onde conheceu a mulher, Phuntsok, a primeira a vir para Portugal quando, através de contactos dentro da comunidade, se soube que um restaurante em Lisboa precisava urgentemente de uma cozinheira para fazer jus ao nome Os Tibetanos.
Ocidentalizaram os sabores, ficaram a conhecer legumes que nunca tinham visto e aprenderam a trocar a carne por seitan, ainda que, na cozinha tibetana, os animais só sejam mortos para dar vida. “É por isso que não matamos galinhas, por exemplo, e optamos por animais de grande porte, como o iaque, que serve para alimentar várias famílias”, explica Dawa enquanto abre o menu, onde nem com essa justificação a carne e o peixe têm lugar.
Os pratos icónicos, como o bife de seitan com cogumelos e natas ou o caril de manga, mantêm-se há 40 anos e, na última década, ganharam a companhia de especialidades tibetanas como os momos – pastéis feitos à base de farinha de trigo e com recheio de seitan, queijo ou vegetais – ou shaptra, um estufado feito originalmente com carne e que, neste caso, é preparado com seitan. Para a mesa ainda vem uma salada de queijo de cabra gratinado, filetes feitos à base de cogumelos e pão tibetano crocante. Manuela, a primeira a arrumar os talheres para dar um fim à refeição, avisa: “Na cultura tibetana costuma dizer-se que a refeição se divide em 1/3 para os sólidos, 1/3 para os líquidos e 1/3 para o espaço livre que deixa vontade para a próxima refeição.” Talvez tivesse sido útil saber isto antes de mandar vir para a mesa um clássico feito com três palavras mágicas: tarte, requeijão e papaia.