As Nações Unidas falham todos os dias a um ritmo alucinante na Síria. O poder diplomático da organização está reduzido a fanicos, preso pela falta de financiamento e pela desconsideração dos atuais líderes das grandes potências pela diplomacia multilateral. E até pela diplomacia tout court. O presidente russo prefere os gestos magnânimos, arbitrários, como a pausa nos ataques à zona de Ghuta oriental, massacrada pela aviação russa e pela artilharia síria na sua intenção de vergar o último reduto dos rebeldes às portas de Damasco.
O cessar-fogo anunciado por António Guterres no sábado, aceite pela Rússia no Conselho de Segurança depois de muito protelar, foi tomado sem grande esperança pelos habitantes encurralados de Ghuta oriental. Até porque, no terreno, aquilo que se sentia era tudo menos um cessar-fogo. Os bombardeiros continuaram a verter as suas bombas a partir dos céus, enquanto as tropas sírias, apoiadas pelo Irão, avançavam no terreno.
Ontem veio Putin e disse: haverá pausa. Não é cessar-fogo de 30 dias como queria o secretário-geral da ONU, mas apenas cinco horas diárias de paragem das hostilidades para deixar entrar ajuda humanitária. O vazio da diplomacia multilateral ficou mais uma vez demonstrado: quem manda é quem tem o poder das armas no terreno, esse é que manda.
Da grande discussão sobre as reformas das Nações Unidas, de tornar a organização mais representativa do mundo atual, de abrir o conselho de segurança a outros territórios (ao Brasil, grande potência económica; à Índia, maior democracia do mundo; a África, continente em expansão) ao estado atual de quase completa afasia, eis na Síria a clara demonstração no palco dos acontecimentos.
Como se viu nestes sete anos de guerra civil de resultados catastróficos para um país rico de tradições, cultura e património cultural, país-encruzilhada do Médio Oriente, o papel da ONU foi o da diplomacia vã, cheia de palavras ocas, apelos, denúncias, alertas, finca-pés, sem quaisquer resultados. Não evitou que se cometessem atrocidades, que o regime recorresse à guerra química, que se massacrasse sem dó nem piedade, que a Rússia pudesse mudar o jogo de um tabuleiro em que os EUA procuraram mexer escondendo a mão e sem definir as regras ou sequer se valia a pena jogá-lo. Em suma, tudo o que podia correr mal à ONU – que entrou na primeira década do séc. xxi disposta a reformar-se para encarar o futuro próspero da diplomacia multilateral na era moderna – correu mal. E a ONU de hoje é aquela que declara um cessar–fogo em que ninguém acredita, principalmente aqueles a quem o céu lhes cai sobre a cabeça todos os dias, em jeito de bombas e granadas lançadas pelas tropas de Bashar al-Assad e dos seus aliados.
Há até denúncias de um bombardeamento com gás de cloro na vila de Al-Shifuniya no domingo – motoristas de ambulância dizem ter sentido o cheiro e o Ministério da Saúde da oposição síria garante que 16 pessoas, incluindo seis crianças, tiveram de ser tratadas com oxigénio por apresentarem sintomas de exposição a agentes químicos.
Quem manda verdadeiramente e quem decide é a Rússia, o ás de trunfo que valeu a sobrevivência do regime sírio quando parecia a caminho do fim. O ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, anunciou ontem a pausa entre as nove da manhã e as duas da tarde, hora local – uma manhã de respiração, acalmada a fuligem e o cheiro da pólvora.
Mais de 550 pessoas foram mortas no espaço de pouco mais de uma semana e, diz o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, baseado no Reino Unido e ligado à oposição, desde que está em vigor o dito cessar-fogo da ONU, morreram mais 31 pessoas.
A França, que o presidente Emmanuel Macron pretende ver mais interventiva, sublinhou a necessidade de garantir que o cessar-fogo de um mês decidido por unanimidade pelo Conselho de Segurança da ONU seja respeitado. Mas nada disse sobre o novo ataque químico. A diplomacia francesa deve estar a fazer contas à vida porque, em maio do ano passado, Macron estabeleceu a linha vermelha que o seu país não estaria disposto a tolerar que fosse ultrapassada, ao referir, numa conferência de imprensa com Putin, que “toda a utilização de armas químicas” na Síria seria encarada por França como motivo para “ser objeto de represálias e de uma resposta imediata”. Em janeiro já houve denúncias de um ataque de armas químicas em Ghuta oriental e os franceses não marcharam em força para a Síria. Este não parece ser o tempo de a França entrar num palco de onde esteve praticamente arredada durante sete anos e não parece ser o da ONU para impor a diplomacia multilateral frente aos tanques e aviões da musculada política russa e iraniana.
Que pode a ONU contra esse “inferno na terra” quase bíblico que Guterres usou como expressão para definir o que se passa na Síria? Principalmente quando há um certo complemento de vingança na forma como Bashar al-Assad age sem contemplações contra Ghuta oriental, o primeiro bastião rebelde a levantar-se em armas contra o regime?
Aparentemente, nada. Como escrevia ontem o “Le Monde” no seu editorial, Putin fez da Síria a sua guerra, um conflito que “se tornou o teatro das rivalidades das grandes potências regionais”, e não será a diplomacia da ONU a fazê-lo mudar de política. A Síria é importante para a Rússia, já que os russos têm instalações navais no porto de Tartus para apoiar a sua frota no Mediterrâneo – em janeiro de 2017, os dois governos assinaram um acordo que permite a Moscovo continuar a usar a base gratuitamente e, ainda por cima, impondo a sua jurisdição soberana sobre as instalações. O tratado, ratificado por Putin em dezembro, permite à Rússia ter 11 navios de guerra em permanência no porto, incluindo embarcações nucleares. O preço do apoio russo a Al-Assad parece estar pago; não é previsível que o presidente russo não cumpra agora a sua parte do acordo, que é o de garantir a sobrevivência do regime de Assad.