A avaliar pelo exterior austero, dificilmente se poderia adivinhar a cornucópia de objetos, histórias e curiosidades que encerram as paredes do grande casarão pré-pombalino. Cartazes, bengalas, documentos com centenas de anos, azulejos, fósseis e minerais, marfins, medalhas, artesanato e amostras de madeiras exóticas convivem em harmonia com bonecos de infância, armadilhas ou ferramentas.
É um não mais acabar de peças que José António Neiva Vieira, engenheiro silvicultor, especialista em assuntos florestais e homem de uma curiosidade omnívora, reuniu ao longo da vida. Há quem lhe diga: «É o teu museu». Mas José Neiva rejeita: «Um museu é uma coisa séria, tem reservas, inventário, segurança, técnicos de pedagogia». Prefere, por isso, chamar-lhe «uma babilónia de recordações, de emoções, de objetos». Uma descrição tanto mais adequada quanto nos encontramos a dois passos da cosmopolita praça do Martim Moniz.
A própria casa onde instalou as suas cerca de 40 coleções – o número exato varia consoante o critério de organização – conta uma história com mais de 300 anos. «O edifício é de 1717, sobreviveu ao terramoto. O terceiro andar foi acrescentado há cerca de 100 anos», explica-nos o proprietário, que herdou o edifício mas durante muitos anos não lhe deu uso. «Quando fiquei com o prédio tive um grande desgosto. Durante vinte anos só me deu despesas. Eram rendas de 25 tostões».
Recuperar um prédio degradado
Há cerca de dez anos encomendou ao filho mais velho, Tiago – que é arquiteto -, um projeto de reabilitação total. «Estava uma decadência, muito degradado. Enterrei aqui muito dinheiro. No fundo procurámos manter tudo o que eram os traços antigos, mesmo as portas e as janelas são as primitivas. Quando se descascou isto», refere enquanto aponta para as paredes, «apareceu nalguns lados o sistema antissísmico da gaiola. Naquela época já havia construções que o utilizavam, só que não estava ainda generalizado».
O espaçoso hall de entrada do prédio «começou por ser uma coisa muito arrumadinha, muito arranjadinha», recorda José Neiva. Mas os netos «já tomaram conta dele: fizeram disto um parque de estacionamento» de triciclos e bicicletas. Aliás, todo o edifício é um «projeto familiar»: o patriarca ocupa o primeiro andar e três dos seus quatro filhos, «com as respetivas equipas», vivem nos restantes. Por isso as portas de casa estão sempre abertas.
Já no interior, um santo de pedra esculpido por um artesão de Ponte de Lima, Armindo Cerqueira Araújo, dá o mote para a visita guiada a esta «babilónia de recordações». José Neiva mostra-nos, em seguida, o objeto que está há mais tempo nas suas mãos: um boneco que lhe foi oferecido pelos pais quando tinha cinco anos. «A maior parte dos bonecos iam passando para os irmãos mais novos, mas os mais simbólicos a minha mãe guardava-os».
A grande aventura
A verdadeira aventura começaria um pouco mais tarde. «O colecionismo sempre foi uma pulsão desde pequenino. A primeira coleção que fiz na vida foi com um colega invisual que infelizmente já faleceu, o Vítor Almada. Era uma figura transbordante, ao contrário da irmã, que também era invisual de nascença. Ele tirou o curso de Biologia com notas elevadíssimas e era tão cativante, tão inteligente, tão brilhante e tão vistoso que até roubava as namoradas aos colegas».
José Neiva e o amigo tinham quinze anos quando começaram a colecionar insetos que apanhavam no campo. «Fizemos uma coleção de insetos vivos. Ele tinha uma garagem onde os guardávamos. Além de uma coleção imensa de escaravelhos, chegámos a ter 13 ninhos de vespas em frascos. Tirávamos as vespas adultas e alimentávamos as larvas com um pincel com mel e ovo. Tínhamos baratas, mosquitos, percevejos do monte…».
O final dramático daquele jardim zoológico em miniatura chegou sem aviso «num fim de semana prolongado de muito calor». «Quando abrimos a porta vimos tudo destruído. Milhões de formigas» tinham invadido a garagem e penetrado nos frascos. «Foi uma mortandade».
Nesse mesmo ano vieram os primeiros minerais, uma paixão de vida que ainda mantém bem acesa. «Os meus pais ofereceram-me uma coleção de modelos cristalográficos e um mostruário de rochas e de minerais. A partir daí comecei a fazer expedições, a ir ao campo, a procurar», declara. Sobre as tábuas corridas do soalho repousam alguns desses exemplares de fósseis que recolheu durante a juventude na zona de Torres Vedras, de onde a família é natural. «Só muito mais tarde, através das feiras de minerais, das lojas especializadas ou de ofertas ou intercâmbios é que comecei a ter peças melhores, comecei com estas coisas mais simples». As mais valiosas e delicadas encontram-se noutro apartamento, onde reside. O mesmo se passa com as bengalas. «Aqui só estão as mais rústicas. Na outra casa tenho bengalas em prata e até em vidro da Marinha Grande. São bengalas pesadas, porque o vidro tem muito chumbo. Era até uma arma mortífera».
Uma surpresa atrás da porta
Mesmo quando já nos habituámos à pletora de objetos que povoam o espaço e preenchem todos os recantos, ainda há margem para surpresas. Por detrás de duas discretas portas de armário de cor neutra esconde-se um expositor cheio de curiosidades. «Aqui tenho vidros ligados à química, louças, como um escarrador do século XIX, marfins antigos – uns que herdei da família, outros que comprei -, medalhas», enumera o colecionador.
Entre estas – são cerca de 600 – há verdadeiras preciosidades. «O meu pai tinha três mil, tinha medalhas de ouro, coisas muito raras. A Numisma fez um leilão só com as mais valiosas. Felizmente consegui convencer os meus irmãos a ficar com um núcleo de medalhas do meu pai». José Neiva destaca um exemplar: a medalha que celebra a inauguração do monumento ao médico Sousa Martins, no Campo dos Mártires da Pátria, em 1900. «O monumento que está aqui na medalha não é igual ao que está lá. O Sousa Martins era um cientista brilhante, tinha um prestígio internacional muito grande, mas ao mesmo tempo era considerado um santo, um homem do espiritismo. A estátua foi escolhida e encomendada pela Câmara a um escultor de gabarito. Mas o povo não gostou porque o Sousa Martins aparecia sentado na base da estátua e então consideraram que o estavam a apoucar. Houve uma revolta» popular e a Câmara acabou por decidir colocar a figura do médico de pé, no topo da coluna.
No meio dos marfins, dos vidros, medalhas, pratos, berlindes, carrinhos de lata e bonecos de Estremoz, há também ferragens e ferramentas antigas. «Tenho pregos desta obra, do século XVIII. São todos feitos à mão, não são industriais». Enormes, irregulares e pontiagudos, têm qualquer coisa de instrumento de tortura.
A consanguinidade e a quinta em ruínas
«Passamos agora a outro núcleo», anuncia José Neiva. «Memórias de família. Que se dividem em três vertentes: a família em si, a Quinta da Macheia (nome que vem de ‘mão cheia’) e as Termas dos Cucos», ambas em Torres Vedras. E ainda os respetivos documentos, que o herdeiro foi ‘desenterrando’ «nas caves, em gavetas, em armários em que ninguém mexeu».
Para explicar quem é quem, José Neiva recorre a uma árvore genealógica dos seus antepassados. «Até recentemente havia dois ramos. Havia o ramo rico dos comerciantes de Lisboa e o ramo pobre dos agricultores do Minho. Muitas vezes os ricos do Sul casavam com as sobrinhas que vinham da agricultura. O primeiro que veio lá do Minho é um tal João Martins Neiva, que fez fortuna no negócio de lãs e sedas, e deixou tudo a um sobrinho». Como também este morreu sem filhos, deixou a fortuna e as propriedades ao avô de José Neiva, que por sua vez casou com uma prima direita, filha da irmã da própria mãe. «Há um problema de consanguinidade na família que explica algumas coisas», sugere o descendente.
Um mapa da Quinta da Macheia datado de 1787 mostra as casas, as hortas, os pastos, o pomar e os olivais. «Esta quinta começou por ser uma aldeia. Depois há um agricultor dessa aldeia que vai comprando as terras dos outros. Começa como um lugarejo e acaba numa quinta. Entrou na nossa família a seguir às invasões francesas. O dono era um militar que se empenhou na defesa das Linhas de Torres e arruinou-se. A quinta foi à praça e foi um tio-trisavô meu que a comprou».
Hoje pertence a José Neiva e aos seus seis irmãos. «Nenhum de nós tem vocação para a agricultura ou capacidade para comprar a parte dos outros», lamenta. Outrora uma quinta altamente rentável e produtiva, «hoje tem os telhados todos em ruína. É de cortar o coração».
As ‘Termas radioactivas dos Cucos’
Mesmo ao lado da arruinada Quinta da Macheia ficam as Termas dos Cucos, também propriedade da família e célebres noutros tempos. «Tenho recordações fantásticas dali. Na minha infância sempre que podia passava lá os fins de semana e as férias». Num dossiê, José Neiva guarda «artigos sobre as termas publicados na imprensa desde que elas abriram em 1892 até à atualidade: a dizer bem e a dizer mal».
Fundadas em 1892 pelo tio-bisavô do silvicultor, as Termas dos Cucos eram ponto de paragem obrigatório para a aristocracia e a sociedade elegante. Em 1908, poucos meses depois do regicídio, chegaram a receber a visita do Rei D. Manuel II. Atualmente «as termas estão abertas, nós cuidamos daquilo e temos um encargo grande. Funcionam como um jardim aberto a toda a gente» que vale a pena conhecer.
O colecionador mostra um requintado rótulo em estilo arte nova, de 1900. «Uma das propagandas da água daquelas termas era ter rádio dissolvido, porque a radioatividade nesta época era considerada relaxante. Quanto mais radioatividade, mais relaxante era. Ainda ninguém tinha descoberto que podia fazer mal à saúde».
Médico com especialidade em reumatologia, o pai do nosso anfitrião foi um dos diretores clínicos das termas. «Dizia que a atividade dele era médico e agricultor, porque tinha a casa agrícola». Quanto a hobbies, «não colecionava nada, a não ser uma biblioteca espantosa, e medalhas. Eram as coleções que ele tinha. A biblioteca foi dividida entre nós, ainda fiquei com algumas coisas, e outras estão ainda por dividir».
Ali, bem perto das fotografias e memórias de antepassados, há uma secção para os mais novos, cheia de bonecos, lápis e livros infantis. «Os meus netos podem mexer em tudo. Eu passo a vida de cócoras a arrumar».
A arrumação é, aliás, um dos verdadeiros dramas que José Neiva tem de enfrentar. «Sou um escravo das minhas coleções», reconhece. «Ando numa crise existencial, porque não sei se daqui a uns anos continuo a aguentar este ritmo». Para consultar um livro de uma estante, por exemplo, tem de tirar sucessivas filas de objetos. E depois há que limpar o pó e fazer a manutenção de todo este espólio. Até porque ele está sempre disponível quer para ser consultado quer para participar em exposições.
«Tenho vários princípios como colecionador», declara José Neiva. «Um é que não se pode ter tudo. Outro é que só se deve ter aquilo de que se gosta verdadeiramente. E outro é que tudo o que se tem está sempre disponível para ser partilhado com terceiros. A nossa passagem por aqui é efémera, e no caixão cabe muito pouca coisa». Claro que tanta generosidade, reconhece, já lhe trouxe alguns «desgostos».
Uma selva em ambiente doméstico
Entramos agora na área dedicada às árvores e às florestas. «Tenho uma xiloteca de respeito, com cerca de mil amostras de madeira. Aqui vemos uma coleção de 82 madeiras de espécies diferentes de eucalipto». Há também amostras de madeiras exóticas em forma de charuto. «Esta veio da Costa do Marfim. São madeiras escuras, densas». A diversidade estende-se ao interior das gavetas, onde há material relacionado com as florestas e a sua matéria-prima, a madeira: lápis, crachás, bonés, apitos. Artigos triviais que convivem bem de perto com verdadeiras preciosidades. José Neiva tira um livro de uma prateleira: «Este é uma edição de 1698. Tratado da Significaçoens das Plantas, flores e frutos que se referem nas sagradas escrituras, pelo padre Isidoro de Barreira. De livros de botânica do século XIX tenho uma coleção muito grande».
Outro núcleo importante são os dois mil cartazes, dos quais 1500 florestais e 500 ligados ao ambiente. «Durante muitos anos estiveram debaixo da minha cama. Ia abaná-los todas as semanas por causa das traças». O silvicultor destaca dois dos mais representativos. Um deles é americano e data de 1945. «Na década de 40 os americanos criaram a figura deste urso, o Smokey, para as campanhas de proteção da floresta. E mantêm-no. Nós já mudámos vinte vezes».
Mais antigo é o cartaz da Festa da Árvore na Amadora, com uma pintura de Roque Gameiro. Data de 1909. «Ainda é do tempo da monarquia mas a festa já era organizada por associações republicanas. Naqueles anos de 1914, 1915 e 1916 havia grandes discussões: uns chamavam-lhe ‘festa pagã e maçónica’, os outros chamavam ‘criminosos e reacionários’ aos que arrancavam as árvores plantadas pelas forças republicanas».
De entre os objetos ligados à floresta que decoram este espaço, chama a atenção uma pinha enorme que, pela forma, pela cor e pela dimensão, se parece incrivelmente com um ananás. «É de um pinheiro americano», explica José Neiva. «Estava no alto de uma estante e uma vez estiquei-me para a apanhar. Fugiu-me da mão e caiu-me em cima da cabeça. Fiquei com um rasgão que levou meses a sarar».
Se a pinha americana parece um ananás, as pequenas amostras de resina parecem rebuçados coloridos. Também virão de paragens distantes? «São resinas que eu tirei das cerejeiras nas escadinhas aqui em frente, este ano», esclarece José Neiva. «As árvores não se dão muito bem aqui. No verão a casca estala e sai resina para tapar os buracos, para não entrarem insetos ou fungos».
Mesmo ao lado dos cubinhos de resina, vê-se um conjunto invejável de madeiras petrificadas e de elementos vegetais fossilizados, como que estampados na matéria dura. José Neiva explica o processo: «A peça que vai fossilizar não pode estar em contacto com o ar, se não decompõe-se. Tem de estar enterrada, e depois as águas de infiltração vão substituindo moléculas orgânicas por partículas minerais. O processo é feito muito lentamente, ao longo de milhares e milhares de anos».
A coleção estende-se à casa de banho
Seria impossível descrever todas as ferramentas, objetos decorativos e produtos florestais reunidos debaixo deste teto. A coleção é tão vasta que se estende até à cozinha e a uma das casas de banho, que abriga um conjunto de artigos ligados à higiene e à saúde, como bacios, clisteres e termómetros. «Tenho de aproveitar todos os espacinhos!», justifica o colecionador.
O que vemos nas várias salas, diz-nos José Neiva, foi acumulado graças à «generosidade de muitos», nomeadamente antigos colegas dos serviços florestais. Mas sobretudo com um grande empenho, paixão e sacrifício pessoal. «Já andei quilómetros para encontrar certas peças».
Para obter alguns ‘troféus’ é preciso, ainda, disponibilidade financeira. «O meu colecionismo cresceu quando eu passei a ter mais tempo e mais dinheiro», assume o silvicultor. «O colecionador é um sofredor. Nunca tem espaço suficiente, nunca tem dinheiro suficiente, nunca tem tempo suficiente. E é sofredor porque tem de fazer escolhas. Nunca pode ter tudo».
Mas, para lá dos sacrifícios inerentes, as coleções também trazem recompensas. Estéticas ou afetivas. «Só tenho coisas que escolhi, e nunca comprei nada de atacado. Se tenho alguma coisa de que não gosto é porque tem grande significado. Também tenho coisas pirosas, daquelas que teria dificuldade em expor, mas estão guardadas porque gosto muito de quem mas deu».
E os objetos podem até servir de consolo em momentos difíceis. «Houve um período em que morreu o meu pai, morreu o meu sogro, divorciei-me, a vida política desencantou-me, a vida profissional estava num impasse, e o colecionismo ofereceu-me um refúgio», reconhece o silvicultor. «Tinha capacidade para comprar, tinha tempo e tinha uma paixão enorme por alguns objetos que faziam parte das minhas memórias familiares ou dos meus hobbies, como era o caso dos minerais Mesmo hoje, se acontece estar deprimido, ponho-me a contemplar os minerais e aquilo enche-me de deleite».
Talvez por isso, excetuando ofertas que faz ocasionalmente a familiares ou pessoas amigas, nunca lhe tenha passado pela cabeça desfazer-se destes objetos. «Tinha de passar muita fome para me desprender de alguma coisa».