Ciclicamente, aparece um fenómeno assim no futebol inglês. Em português, por exemplo, aconteceu em 2003, quando um tal de Cristiano Ronaldo foi contratado pelo Manchester United, e no ano seguinte, com a chegada qual furacão de José Mourinho ao Chelsea. Nos últimos tempos, esse fenómeno tem-se evidenciado sobremaneira. Na época passada – e na primeira fase desta – com Marco Silva, que encantou adeptos e críticos pelo futebol praticado por Hull City, primeiro, e Watford depois, e agora de forma ainda mais vincada com Carlos Carvalhal.
O homem, diga-se em abono da verdade, chegou a solo britânico vai para três anos. Conduziu o Sheffield Wednesday, um histórico caído em desgraça, aos play-off do segundo escalão duas épocas consecutivas, mas acabou sempre por cair de forma inglória às portas da Premier League – nada que beliscasse a sua reputação entre os adeptos, que até lhe dedicaram um cântico: o eterno “Carlos had a dream”, frase que Carvalhal leva para todo o lado, cosida que está no interior do seu casaco da sorte. Este ano, porém, tudo mudou: as vitórias escasseavam, o futebol praticado era assim para o fraquito (muito) e o clube de Hillsborough acabou por cortar a ligação com o homem nascido em Braga há 52 anos.
Nada que atirasse Carvalhal ao chão: apenas quatro dias volvidos, o técnico das sete vidas recebeu um convite do moribundo Swansea e, qual Tom Cruise, atirou-se de cabeça a esta missão impossível. Ou quase: é que, sob o comando do português, os swans somam sete vitórias (com os gigantes Liverpool e Arsenal entre os derrotados), cinco empates e apenas duas derrotas em 14 jogos. Em casa, vão seis jogos seguidos a ganhar, algo que não se via no clube desde 2007. Mais revelante ainda: com o triunfo (2-0) sobre o… Sheffield Wednesday, na última terça-feira, o Swansea garantiu a qualificação para os quartos-de-final da Taça de Inglaterra pela primeira vez desde 1964 – um ano antes do próprio Carvalhal nascer. Venha de lá o Tottenham.
Analogias, metáforas e pastéis A qualidade demonstrada por este Swansea em campo tem ajudado ao apogeu de Carvalhal. Mas não explica por si só a aura que já envolve o homem que falhou no Sporting, no Braga e no Besiktas, mas que ainda hoje é visto como herói no Leixões, que levou à final da Taça de Portugal enquanto disputava a II Divisão B, ou no Vitória de Setúbal, onde venceu a primeira edição de sempre da Taça da Liga.
É nas conferências de imprensa antes e depois das partidas que Carvalhal tem dado os seus shows. As analogias e metáforas utilizadas pelo treinador luso têm feito as delícias da comunicação social desportiva britânica – e nesta terça-feira tal voltou a acontecer: “Depois de marcarmos os dois golos, fechámos a casa. Fechámos as portas e todas as janelas.”
Este é apenas o exemplo mais recente. Mas há mais. Na verdade, tudo começou após a surpreendente vitória sobre o Liverpool – esse mesmo, que veio ao Dragão arrasar por completo o FC Porto. Então, Carvalhal garantiu ter dito isto aos jogadores na preparação do encontro: “O Liverpool é muito forte, um autêntico Ferrari. Mas se puserem um Ferrari no meio do trânsito de Londres às quatro da tarde, esse Ferrari não vai andar mais depressa que os outros carros.” O homem tem razão.
Depois de derrotar o Arsenal, mais uma pérola carvalhesa. “O Swansea contratou-me para fazer uma espécie de milagre. A equipa estava quase morta, quase pronta para ir para o cemitério. Agora deixámos os cuidado intensivos e talvez estejamos perto de deixar o hospital. Ainda não estamos bem, o médico ainda precisa de nos ver, mas não estamos muito longe de sair”, atirou entre risos – seus e do jornalista que o entrevistava. A meio da conferência, de resto, Carvalhal pôs toda a sala a rir quando gritou “Penálti” depois de um profissional da comunicação tropeçar.
Após novo triunfo, agora sobre o Burnley, Carvalhal surpreendeu os ingleses com uma expressão celebrizada em Portugal já na década de 80 por Quinito, um dos mais míticos treinadores do nosso futebol. Num ápice, “Metemos a carne toda no assador” passou para “We put all the meat in the barbecue”. E antes da partida, o antigo defesa do FC Porto tinha oferecido pastéis de nata aos deliciados jornalistas. Semanas depois, outra tirada perto do genial: “Estatísticas? Eu e tu vamos a um piquenique e levamos uma galinha. Eu como a galinha toda e tu nem um bocado. Porém, estatisticamente, tu comeste metade dessa galinha. É por isso que eu não ligo a estatísticas: quando lidas com pessoas, as coisas podem ser imprevisíveis.”
“Com um estilo inimitável e frases divertidas, Carvalhal já captou a atenção dos fãs de clubes para além do Swansea e do Sheffield”, referia a “BBC” num artigo de fundo sobre o treinador português, descrito como um “filósofo do futebol” – também pela afeição à obra de Descartes, que aprofundou na universidade. “Ele desempenhou um papel crucial na recuperação da equipa. Tem uma forma de trabalhar e acredita no seu plano. Se sentimos que o treinador confia na sua estratégia, vamos seguir os passos dele”, realçava André Ayew, reforço de inverno e uma das estrelas da companhia.
No passado, José Mourinho já se tinha imposto pela boca. Certa vez, por exemplo, respondeu desta forma quando questionado sobre críticas do exterior: “The dogs bark and the caravan goes by”, que é como quem diz “Os cães ladram e a caravana passa”. O auto-intitulado Special One, todavia, fez sempre questão de pautar a sua postura perante os média britânicos (e espanhóis… e portugueses) com um registo a denotar uma certa distância e até uma pitada de arrogância. Carvalhal é o oposto completo: com uma abordagem mais positiva e divertida, o minhoto vai cimentando o estatuto na Premier League.