O Zé, as dívidas e os credores

O Zé era um bom vivant, amante dos graciosos prazeres da vida. Nascido numa família com pergaminhos, desde sempre desfrutou de uma vivência desafogada, na qual a palavra dificuldade não fazia parte do seu vocabulário. Mas depois de constituir família, numerosa para os parâmetros actuais, começou gradualmente a enfrentar uma série de problemas a que…

O Zé era um bom vivant, amante dos graciosos prazeres da vida.

Nascido numa família com pergaminhos, desde sempre desfrutou de uma vivência desafogada, na qual a palavra dificuldade não fazia parte do seu vocabulário.

Mas depois de constituir família, numerosa para os parâmetros actuais, começou gradualmente a enfrentar uma série de problemas a que não estava acostumado.

O seu ordenado, somado ao de sua mulher, era manifestamente insuficiente para manter o nível de vida do qual não queria prescindir.

A solução para esta contrariedade revelou-se milagrosa: deixou-se seduzir pela insistente e agressiva campanha de incentivo ao endividamento.

Numa parceria supostamente vantajosa para ambas as partes, foi contraindo empréstimos junto da banca, conseguindo, assim, viver muito acima do que os rendimentos, fruto do seu trabalho, lhe permitiam.

Adquiriu uma moradia com piscina em pleno coração de Cascais, recheou a sua garagem com os últimos modelos das mais prestigiadas marcas de automóveis, inscreveu os filhos em colégios privados de renome, passou a assíduo frequentador dos restaurantes mais afamados e a Avenida da Liberdade tornou-se no seu local de eleição para se vestir e presentear a mulher com as joias que ela tanto apreciava.

Claro que este mundo imaginário em que orbitava teria, mais tarde ou mais cedo, que desabar! Tão depressa como enriqueceu, também de um momento para o outro acordou atolado em dívidas, incapaz de as saldar.
Os seus amigos banqueiros, até então sempre lestos e solícitos em engordar a sua conta bancária, num ápice tiraram-lhe o tapete, deixando-o abandonado à sua sorte.

O pobre do Zé, em desespero, recorreu a diversos amigos que o pudessem salvar da encrenca em que se deixara cair. Procurou primeiro junto de um engenheiro seu conhecido, que sabia que não lhe cobraria contrapartidas por um eventual empréstimo, mas esse já tinha emprestado todo o seu dinheiro a outro aflito.
Encontrou, então, três pessoas que tinha como amigas, que se disponibilizaram a ajudá-lo, mas que, em simultâneo, esfregavam as mãos de contentamento porque viam aí também uma oportunidade de negócio para eles próprios.

Conhecedores da faceta gastadora do Zé e, consequentemente, temendo um mais que provável incumprimento na devolução do empréstimo contraído e das elevadas taxas de juros a este associadas, impuseram-lhe uma panóplia de condições inegociáveis, indispensáveis para que os seus gastos não ultrapassassem o salário auferido.

Com grande relutância o Zé viu-se forçado a aceitar as imposições que considerava ultrajantes, sonhando que somente assim poderia manter o nível de vida a que se habituara e do qual ninguém o faria abdicar.

Apesar de se ter moderado nos gastos, esforçando-se por cumprir com as obrigações a que se subjugara aos três amigos da onça, depressa tombou de novo num pântano de dívidas, reentrando numa espiral de incumprimento junto dos seus credores.

Suplicou de novo, junto destes, que lhe dessem mais uma oportunidade, falando-lhes ao coração, invocando o desespero que o dominava por os incontáveis encargos a que estava submetido não lhe permitirem alimentar convenientemente a sua família.

Os três ditos amigos, que de tolos nada tinham, não se deixaram comover de compaixão pelos queixumes do Zé e impuseram-lhe novas condições, e desta vez mais gravosas, para que o auxílio se mantivesse.

Foram ao pormenor na lista de obrigações: o Zé teria que trocar a sua luxuosa vivenda de Cascais e mudar-se para um modesto apartamento em Massamá; o Mercedes, o Ferrari e o Porche seriam vendidos para amortização da dívida; os filhos passariam a frequentar o ensino público; acabaram-se os jantares no Porto de Santa Maria, no Gambrinus, no Tavares Rico e doravante refeições só apenas em casa e, ocasionalmente, numa tasca barata; e roupas para a mulher, e para o restante agregado familiar, só mesmo na Zara e na Primak, e exclusivamente em períodos de campanhas promocionais.

O Zé, obviamente, ofendeu-se com todas estas imposições. Considerou-as uma afronta e uma descarada ingerência no foro privado da sua família, que se sentiu insultada na sua honra e dignidade.

Ameaçou que não restituiria a verba que anteriormente lhe fora disponibilizada pelos três agora facínoras e intimou-os a que retirassem as vergonhosas obrigações e que simplesmente lhe emprestassem o cacau, e sem demora. 

Com inteligência soube tirar proveito pessoal da contenda, arregimentando para as suas hostes um coro de indignados, solidários com a sua luta, apesar da maioria dessas almas estar completamente a zero quanto ao conhecimento dos devaneios em que ele se deixara envolver ao longo dos tempos.

Malgrado a violência verbal dos novos capangas do Zé, que inundaram os jornais, televisões e redes sociais com campanhas agressivas de oposição às exigências decretadas pelo trio de amigos, estes não se deixaram intimidar e, pelo contrário, endureceram a sua posição, ditando um ultimato para o seu cumprimento.

Em desespero de causa o Zé teve uma ideia genial: resolveu juntar toda a sua família e pôr à consideração desta a aceitação, ou não, das medidas que ele próprio recusara. Seria a família, no seu todo, a decidir a resposta a dar ao três emproados endinheirados, que, pensava ele, assim teriam que respeitar o veredicto.
Muitos dos familiares, suspeita-se mesmo que a maior parte deles, sabedores dos disparates que os arruinara, cuja responsabilidade deveria ser atribuída ao patriarca, e conscientes de que um não às propostas de resgaste da situação financeira da família seria o descalabro total, inicialmente mostraram-se tentados a aceitar a ajuda que lhes era oferecida.

Mas o Zé, socorrendo-se da sua capacidade de persuasão, conseguiu dar a volta aos indecisos, convencendo-os de que um não ao amparo proposto não significaria a sua liminar rejeição, mas sim a obrigação daquele ser revisto e vir a enquadrar requisitos mais favoráveis.

Convencidos por este espertalhaço argumento, a maioria dos filhos acatou a vontade do pai, votando contra os termos formulados no resgaste à família.

O Zé, rejubilando de alegria e de peito feito, escudado na determinação da sua plebe e sob o aplauso dos seus admiradores, marchou para junto do trio do dinheiro, intimidando-o a submeter-se à decisão maioritária do seu agregado familiar, obedecendo, assim, ao voto democraticamente assumido.

No entanto, para sua surpresa, os homens do capital mantiveram-se irredutíveis e fizeram tábua rasa do processo democrático ardilosamente por si engendrado e das vozes que, um pouco por todo o lado, se fizeram escutar. Pior ainda, entenderam por bem endurecer a sua posição, arrolando novas e mais onerosas bitolas para que a ajuda financeira viesse a ser facultada.

De rabinho entre as pernas, cabisbaixo, finalmente convencido da inexistência de mais um qualquer recurso dilatório, o pobre do Zé deu-se por derrotado, vergando-se aos constrangimentos vexatórios e necessários para que possa ver a sua conta bancária mais composta.

Claro que perante a sua família e a legião de amigos que se lhe mantiveram fiéis, o seu discurso foi outro, não dando a face e jurando a pés juntos que o acordo obtido fora bem mais vantajoso do que aquele previsto antes do pronunciamento dos seus. O voto destes, segundo a lábia do Zé, tornara-se decisivo para a cedência dos credores, curvados perante a forte determinação da família.

Neste momento o Zé ultima os preparativos para se mudar para Massamá, onde irá ficar vizinho de um ilustre da terra.

No entanto, enxovalhado por aqueles que supostamente o salvaram da bancarrota e consciente de que os obstáculos intransponíveis jamais o vão largar, o Zé estuda já uma solução alternativa, a qual passará, irremediavelmente, por abandonar o País que o viu crescer.

Nota: esta é uma história de ficção; qualquer semelhança com factos verídicos não passa de simples coincidência!