A diplomacia profissional, prudente, sensível e sabedora pode até ser a moeda de troca da política convencional, mas nada pode contra o mais poderoso espetáculo de entretenimento governamental no planeta. Só com muita dificuldade se exagera a surpresa que o Presidente e showman Donald Trump causou na última ida ao palco da política internacional. Na madrugada portuguesa de quinta-feira, praticamente sem aviso, conselho, plano ou estratégia, assim que ouviu da boca dos negociadores sul-coreanos acabados de chegar de Pyongyang que Kim Jong-un desejava reunir-se com o Presidente dos Estados Unidos, Trump aceitou num ápice fazer o que nenhum antecessor fez em 25 anos de experiências diplomáticas com a Coreia do Norte: aceitar um encontro frente a frente com o líder supremo. Donald Trump e Kim Jong-un vão com toda a probabilidade apertar a mão e conversar para, juntos, desativarem uma bomba relógio nuclear que ambos ajudaram a construir e alimentaram, há não muito tempo, com insultos, ameaças e enganos. E como não parece haver limite para a política por impulso na Casa Branca, esse encontro acontecerá em breve, muito em breve, «dentro das próximas semanas», aliás, como dizia ontem o secretário de Estado americano, Rex Tillerson.
Este é não apenas um desenvolvimento transformador na relação entre os dois países. É também um acontecimento imprevisível e de alto risco. Há, afinal de contas, várias razões pelas quais os anteriores presidentes norte-americanos não aceitaram reunir com os outros Kim. Bill Clinton, por exemplo, esteve muito perto de o fazer nos últimos meses do mandato, e num momento em que os Estados Unidos e a Coreia do Norte finalizavam um acordo que, supostamente, evitaria que o país desenvolvesse armas nucleares, normalizaria as relações diplomáticas entre as duas nações e ofereceria a Pyongyang as centrais de energia elétrica e ajuda humanitária de que tanto precisava. Mesmo passados anos de negociação e projetos, o entendimento falhou e o grande momento em que um Presidente americano e um Kim apertariam as mãos não chegou aos negativos.
A desavença desses dias fez os norte-coreanos redobrarem esforços na busca de mísseis intercontinentais e armas nucleares. Uma desavença hoje terá consequências potencialmente cataclísmicas. «A não ser que a cimeira seja apenas uma extraordinária oportunidade fotográfica e símbolo do apaziguamento, ou uma tour de boa vontade, este novo caminho norte-americano e coreano está a funcionar diplomaticamente ao contrário», argumenta Robin Wright, que acompanhou as campanhas de Clinton nos 90, escrevendo na New Yorker. «Uma cimeira entre os líderes é, normalmente, a recompensa e não tanto o ponto de partida.»
Trump colhe para já as recompensas mediáticas da diplomacia que se reivindica há muito e que ele próprio recusava até há uma semana. A tensão norte-coreana, que hoje tem os mísseis e as bombas com que apenas sonhava há 25 anos, estava em níveis insuportáveis até que a Coreia do Sul aceitou a mão de Kim e abriu portas a um período de apaziguamento nos Jogos Olímpicos de Inverno. Os Estados Unidos aconselharam Seul a não dar ouvidos às manobras de diversão norte-coreanas e nas Nações Unidas repudiaram as palavras mais ou menos amigáveis que se ouviam do Norte, e que designaram como uma «operação de charme».
Moon Jae-in, o recém-eleito Presidente sul-coreano – que prometeu na campanha, precisamente, melhor relações com o Norte – queria, porém, uma Olimpíada em paz, sem rockets e mísseis disparados contra o mar. Aceitou a mão norte-coreana, a chegada de uma comitiva de altíssimo nível, sentar-se à mesa com a influente irmã do ditador e, pouco depois, enviar a sua primeira delegação governamental para lá do Paralelo 38 em onze anos. Foi essa delegação que se encontrou com Kim Jong-un, a mulher e a irmã, e, segundo escreve a Reuters, fizeram muito mais. Jantaram, conviveram relaxadamente, ouviram com surpresa piadas do próprio Kim sobre a forma como surge de forma disparatada na imprensa internacional, comeram noodles frios, caldo, beberam vinho e o licor tradicional soju. E receberam, mais relevantemente a notícia que entregariam em Washington: Kim está disposto a negociar o desarmamento nuclear a troco de garantias de segurança e interessado em ver em pessoa o homem que no Twitter lhe chama o «pequeno homem foguete».
Impulso atómico
A mesma veia que levou Donald Trump a insultar Kim em agosto e causar a mais perigosa crise nuclear desde os mísseis em Cuba, parece tê-lo levado a aceitar o convite do ditador na quinta-feira, numa reunião que não estava sequer agendada. De acordo com o New York Times, Donald Trump tinha que se encontrar apenas ontem com a equipa sul-coreana que viajou no início da semana a Pyongyang para ouvir os recados de Kim, mas, ao saber que a delegação se encontrava na Ala Oeste da Casa Branca, convidou-a a entrar na Sala Oval e contar a história da visita. Recebeu com agrado o convite e mostrou intensões de o aceitar prontamente. A equipa sul-coreana, apanhada de surpresa, disse que havia primeiro que telefonar ao Presidente sul-coreano pedindo autorização, algo que fizeram rapidamente com um telefone oferecido pelo Presidente dos Estados Unidos. Trump marcou uma conferência de imprensa para as 19h locais. Antes da hora, o Chefe de Estado passou pela sala de conferências para avisar os jornalistas de que algo de grande iria acontecer dali a momentos. Tinha razão. «Foi chocante e, de forma estranha, nada surpreendente», escrevia ontem no New York Times Peter Baker, correspondente na Casa Branca. «A decisão de Trump fazer o que nenhum outro Presidente em funções fez e encontrar-se em pessoa com o líder norte-coreano reflete uma abordagem audaz e supremamente autoconfiante aos assuntos internacionais. Seja na paz para o Médio Oriente ou nos acordos comerciais, Trump afirma repetidamente que conseguirá fazer o que aos outros foi impossível pela simples força da sua personalidade.»
É abaixo da epiderme, no entanto, que se encontram os problemas. O apaziguamento abriu a porta ao diálogo, mas não alterou nada de fundamental no equilíbrio de poderes e desejos dos países envolvidos. Se é verdade que a Coreia do Norte diz que está disposta a abrir mão das suas armas nucleares a troco de «garantias», também é verdade que essas condições não deixaram de ser inaceitáveis para a Coreia do Sul, Estados Unidos e Japão. O país que na década de 90 suportou a fome extrema e viu morrer mais de três milhões de pessoas de inanição, e mesmo nesse momento não cedeu em nenhum dos pilares vitais do seu regime, tão-pouco estará disposto a fazê-lo agora que tem as armas e mísseis de longo alcance que considera a sua maior apólice de seguros. Para Pyongyang, aliás, só há a ganhar com uma cimeira internacional. Obterá o reconhecimento tácito que há muito busca e conquistará uma certa normalização, a custo de, muito possivelmente, nada. É possível que as sanções internacionais tenham causado estragos suficientes para obter algumas concessões do regime de Kim. No entanto, o mais provável é que a Coreia do Norte se mantenha agarrada à Bomba. A sua fatura provável, explica Robin Wright, é demasiado elevada. E, mesmo assim, nada obtém a segurança que Pyongyang deseja como os mísseis nucleares que teriam salvado Muammar Khadafi e Saddam Hussein: «A maior pergunta por responder é sobre o que a Coreia do Norte deseja em troca das suas armas nucleares. Pode passar pelo fim dos exercícios militares entre os EUA e a Coreia do Sul, a retirada das forças americanas da Península Coreana, um tratado formal que termine a Guerra da Coreia, normalização de relações diplomáticas, garantias de não agressão, um fim às sanções económicas e possivelmente ajuda económica.»