É numa fábrica não muito grande que sete padeiros fazem o pão da Panificadora Modelo de Carnide, uma das mais antigas de Lisboa. Ao final da manhã, só um está de serviço. Vários carrinhos de tabuleiros guardam pequenos pães, à espera da sua vez de irem para o forno. Ao fundo, na zona de fabrico, duas grandes amassadeiras – de proporções muito maiores do que as de lá de casa, claro. Logo ao lado há uma mesa comprida onde os padeiros trabalham o pão e dividem a massa em trinta unidades, que depois são colocadas nos carrinhos – que conseguem guardar, no máximo, 900 bolinhas. Aí ficam a crescer, e, quando atingem o tamanho que se quer, vão ao frio. “A amplitude térmica é o que faz o pão estalar, é por isso que racham.” A racha a que se refere Fernando José, um dos gerentes, é a apetitosa abertura irregular que os pães exibem no meio. E, garante, é obrigatória.
Uma pequena sala guarda várias sacas de farinha empilhadas. “Usamos receitas mais tradicionais e não inventamos muito. Hoje em dia, poucas padarias fazem aquele pão antigo”, afirma o gerente, de 39 anos, que acredita que só as padarias antigas e não as novas o fazem. “A farinha de pão de leite é a única farinha que compramos pré-feita, é só misturar água”, diz. Porquê? “Porque depois implicava ter soros de leite e outros ingredientes mais difíceis. É uma receita mais complicada. E há outra questão: para os pães de leite estarem sempre fofinhos é preciso terem vários conservantes, e esta farinha pré-misturada já tem tudo isso.”
A especialidade da casa são as bolinhas que vemos nos carrinhos. “A carcaça está a cair em desuso”, acredita Fernando José. Por dia, para 27 mil bolinhas, nesta casa fazem-se 1800 carcaças. “Não há muitos anos, ainda fazíamos nove mil carcaças.”
Uma casa quase centenária Nesta casa, a confeção de pão não é coisa recente e tem sido feita pelas mãos da mesma família desde a sua fundação. As paredes que a circunscrevem guardam memórias feitas de farinha e fermento desde 1923. Foi nesse ano que os bisavós de Fernando José – Francisco Antunes e Maria da Piedade – compraram a padaria onde ainda hoje corre o negócio.
Passou depois para as mãos do avô de Fernando José, que esteve pouco tempo à frente do negócio porque viria a falecer cedo. Foi então que o pai assumiu o negócio, “com 20 ou 21 anos”, e por ali ficou cerca de 40. Seguiu-se a geração seguinte: ainda adolescentes, Fernando José e o irmão começaram a ajudar o pai, que entretanto se reformou e lhes deixou o negócio.
“Há pessoas que vêm aqui desde sempre e que hoje já têm 70 e tal anos. Muitas dizem que ainda se lembram do meu bisavô, de virem cá quando o pão era racionado – cada pessoa só podia levar uma certa quantidade de pão e o pão era até cortado para fazer o acerto no peso.” Terá sido na ii Guerra Mundial, quando o governo de Salazar instituiu uma política de racionamento de vários bens essenciais, entre os quais o pão.
Se nessa altura não havia variedade, o mesmo já não se pode dizer de hoje. “Tentamos ter um bocado de tudo para satisfazermos a procura que existe, mas a nossa especialidade são as bolinhas de mistura”, conta Fernando José ao i.
Aqui, não é só durante a noite que se faz pão, até porque não falta procura – faz-se várias vezes ao longo do dia, “para vender aqui no balcão”, mas também para dar resposta “à procura do pequeno retalho, supermercados, escolas públicas, colégios e lares”. Seis carrinhas de caixa fechada garantem a entrega das encomendas aos clientes. Antes de saírem da fábrica, contudo, dois contadores têm a função de contar os pães para assegurar que perfazem a quantidade encomendada. Por dia, além das 27 mil bolinhas e das 1800 carcaças, saem dos fornos da padaria 300 pães grandes, 100 broas de milho, 100 pães de leite e seis mil bolos.
E como são os dias numa padaria com décadas de vida? Trabalha-se seis dias por semana, de segunda a sábado. “À meia-noite já estão cá os padeiros todos, que durante a noite fazem todas as variedades. Até às seis e meia da manhã, têm tudo feito.”
A massa das bolinhas, que voltam a cozer–se a meio da manhã, fica guardada nas estufas frias. A meio da manhã também se faz mais massa, para assegurar o pão necessário para a tarde. “Ao fim da tarde, quando fechamos, a massa que sobra é reintroduzida na massa do dia a seguir. Depois, às 21h30, chega o amassador, que começa a pesar as farinhas e a preparar tudo para, à meia-noite, se começar outra vez a fazer o pão.”
Quanto às sobras, “não há quase nenhumas”, garante o gerente. “Vem cá a Re-food – temos prazer nisso porque é pena às vezes chegar ao final do dia e ficarem ali duas ou três caixas de pão. A Comunidade Vida e Paz, que dá apoio aos sem- -abrigo, também vem cá sempre buscar.”
Quem é quem nesta família? Jorge, funcionário da casa, trabalha na padaria desde que saiu da tropa. “Trabalho cá há 23 anos”, recorda. Atualmente está na fábrica, mas nem sempre foi assim. Até há três anos era um dos motoristas que levavam as encomendas aos vários clientes. “Foram 20 anos a levar com chuva na cabeça, não era fácil. Entretanto, falei com o patrão para vir aqui para dentro e ele concordou porque um senhor reformou-se.” Está na casa dos 40 anos, começa a trabalhar às 3h30, mas não dorme durante o dia. “Não quero ter esse hábito, deito-me é cedo, às 21h ou 21h30.”
Uma das suas funções é contar o pão das encomendas. E ainda se engana muito? “Sim, ainda hoje me engano. Ao princípio era mais complicado, mas ainda acontece. E depois é o stresse de ter as voltas prontas para os colegas da rua não se atrasarem. E de vez em quando esqueço-me de mandar encomendas para alguns clientes e ligam para cá, e a gente vai lá entregar. E eu peço desculpa, a culpa é minha, tenho de assumir aquilo que faço. Engano-me e vou continuar a enganar- -me, só não se engana quem não faz nada, não é?”, responde.
Nuno Raimundo, por aqui desde 2003, é o encarregado da fábrica. Faz um pouco de tudo, desde a gestão das encomendas e da distribuição ao controlo do fabrico e da cozedura do pão. Recorda como antigamente se usava massa-mãe, para contrapor com a realidade de hoje. “Os processos de fabrico de pão tiveram de evoluir, porque as saídas de pão são maiores do que eram e o próprio pão que se faz hoje em dia não tem nada que ver com o que se fazia antigamente.” Era, segundo este especialista, mais rijo e maçudo. Hoje, “as pessoas gostam do pão fofinho” e a massa-mãe não responde a esse gosto. “A massa-mãe era usada antigamente, não é uma coisa que se use habitualmente e nós não usamos. Era uma massa que se guardava num alguidar, de um dia para o outro, e até os vizinhos trocavam lá nas aldeias uns com os outros para fazer o pão. É muito raro usar-se já, até porque depois fica a cheirar a azedo.”
Lúcia é outro dos rostos da panificadora, mas ao balcão, a atender clientes. É filha do caixeiro que noutros tempos, durante 30 anos, assegurava as vendas aos clientes que aqui entravam. Veio substituir o pai, que se reformou, e já está na casa há dez anos. “As alturas mais complicadas são as tardes e os sábados”, dia em que já chegaram a ter uma fila de 15 pessoas na rua.
Toninho, um outro funcionário que trabalha como padeiro, interrompe a conversa para dizer que o pão vai sair do forno. É um dos padeiros que ali trabalha há mais tempo. “Já temos cá a família toda: as duas filhas, que fazem a limpeza da fábrica, e o filho mais velho, que é padeiro”, conta o gerente Fernando. “Já lhes dissemos que quando o pai morrer, eles não podem todos ficar os cinco dias em casa, porque senão fechamos a padaria”, acrescenta, entre risos.
O pão é então retirado do forno com umas pás próprias e colocado em cestos de plástico cinzento.
E o sal? Em outubro, o governo assinou um protocolo com a indústria da panificação para, até 2021, as empresas do setor reduzirem o sal presente no pão para um grama em cada 100 gramas de pão. Na Panificadora Modelo de Carnide, as regras já estão em vigor. “Quando saiu a lei do sal, os nossos produtos já tinham quase todos valores abaixo do permitido”, diz Fernando José. A inspeção, garante o empresário, já por aqui passou. “A ASAE veio cá por causa do sal, recolher amostras para fazer análises e ver a quantidade que usamos. Nalgumas receitas reduzimos o sal e pronto.” E nenhum cliente notou, garante.
O futuro Fernando e o irmão – que também se chama Fernando – já têm descendência. E contam, tal como o pai e as anteriores gerações contaram, com a continuação do negócio pelas mãos dos filhos. “O mais velho é o meu, que tem 13 anos e mostra algum interesse. Acho que ele se está a fiar, e eu também. Eu e o meu irmão estamos desejosos que ele venha para aqui trabalhar que é para a gente ter mais folgas…”, confessa. “Já temos 40 anos, a vida passa muito depressa e vamos estar aqui a matar-nos a trabalhar em vez de a aproveitarmos?” Estão, contudo, convencidos de que o futuro do pão passa por casas com história e experiência. Se tudo correr bem, daqui a cinco anos sopram cem velas.