A pouco e pouco, o centro da capital vai-se movendo e as casas vão sendo reabilitadas. A pressão do turismo e a crescente popularidade internacional da cidade fazem com que os bairros populares do centro sejam oportunidades muito apetecíveis para os negócios. Desde 2008 que uma grande operação imobiliária está pronta para avançar na chamada Colina de Santana, onde o Ministério da Saúde vendeu à Estamo, a preço de saldo, um conjunto de hospitais com maior área do que a Baixa Pombalina. O Hospital de São José foi vendido por 39,98 milhões de euros, uma pechincha se pensarmos que um pequeno edifício degradado na Rua do Benformoso pode atingir 2 milhões de euros de valor comercial.
“Lisboa está a viver um momento de dinamismo, vibração, energia, inovação, ânimo, polaridade positiva, como não me lembro de alguma vez acontecer (…) Todos os meus antecessores tiveram a ambição de reabilitar a Baixa, mas é agora que isso está a acontecer. A minha obrigação é agarrar estas oportunidades e projetar o futuro da cidade por muito tempo e na direção certa”, palavras do presidente Fernando Medina num artigo no “Expresso” em maio de 2016.
Sob a gestão do governo de Sócrates foi lançado o ponto de partida desta grande operação imobiliária, que começou com a venda pela CML de um terreno em Chelas para a edificação de um novo hospital. Seguindo o plano para a construção dessa nova unidade de saúde, na altura chamada Hospital de Todos-os-Santos, foi feito concurso público para a parceria público-privada (PPP) para a sua construção e gestão, anunciado no ano de crise de 2008. O passo seguinte foi reunir uma série de hospitais do centro de Lisboa numa estrutura, o Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), que junta numa primeira fase o hospitais de São José, Santa Marta, Capuchos e Dona Estefânia. Em 2009, a Estamo compra três destes hospitais, passando o CHLC a pagar renda à Estamo.
Começa-se a ouvir falar que se pretende encerrar as unidades de saúde do centro de Lisboa para serem substituídas pelo novo hospital a ser construído em Chelas. O Hospital Curry Cabral, que já fazia parte das propriedades da Estamo desde 2008, só em 2012 passa a fazer parte do CHLC, juntamente com a Maternidade Alfredo da Costa. Deste seis hospitais com morte anunciada, apenas o dos Capuchos tem um forte impedimento legal: o terreno e as instalações foram cedidas por particulares para serem uma unidade de saúde e, caso a sua utilização se modifique, os direitos de propriedade seriam acionados pelos seus donos originais. A justificação desta extinção aparece sob a capa dos enormes custos estruturais e do estado degradado em que estariam estas unidades hospitalares. “O impressionante é que Paulo Macedo fala em 48 milhões de euros destes custos estruturais e o secretário de Estado, Manuel Delgado, recentemente demitido por causa do escândalo da Raríssimas, contabiliza, um ano depois, 68 milhões. Parece que tudo é argumentável para fechar estas unidades de saúde que recentemente ganharam uma importante certificação de qualidade internacional (ISO 9001; 2008 Caspe Healthcare Knowledge Systems)”, argumenta a arquiteta Ana Jara, vereadora substituta do PCP na CML, ao i. O problema da destruição destas unidades hospitalares também se prende com a diminuição de camas: em 2003, os hospitais de São José, Capuchos, Santa Marta, Dona Estefânia e Curry Cabral somavam 2195; em 2013, com todos os cortes na saúde, só tinham 1403 camas, ainda assim muito mais que as 785 que estavam inicialmente previstas para o novo hospital. “De qualquer forma, o Ministério da Saúde tem feito um autêntico milagre. Apesar de ainda estar longe do número de camas dos hospitais que querem encerrar, vão subindo o número de camas do projetado hospital de Chelas, como uma espécie de milagre da multiplicação dos pães: aumentam o número e baixa o preço estimado pelo hospital”, ironiza Ana Jara ao i.
O custo da sua construção, que foi inicialmente orçamentado em 600 milhões pelo ministro Paulo Macedo, passou recentemente para 300 milhões, para um hospital maior e de construção em parceria público-privada. Nesse negócio é previsto que o Estado passará a pagar uma renda anual ao operador privado de 16 milhões de euros, conforme anunciou o secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado. Esta redução de 50% do custo parece antever uma prática de suborçamentação que se generalizou para obras públicas em todo o país. Os decisores baixam o preço para que a obra avance e mais à frente se verá quanto custa de facto.
Um PDM revisto para vender hospitais
A revisão do PDM de 2012 foi executada com as necessárias alterações ao uso de solo, prevendo a operação urbanística de saída dos hospitais e a introdução de novos programas de uso privado, transformando os equipamentos públicos de saúde em projetos residenciais e hoteleiros de alta rentabilidade.
Como consumação pública deste facto, a Estamo encomendou os projetos de arquitetura, que chegaram antes da discussão política. Primeiro apareceram os planos arquitetónicos daquilo que iria substituir os hospitais, só depois surgiram os documentos estratégicos que pretendiam justificar as escolhas políticas e urbanísticas deitadas em maquete.
A polémica levou a Assembleia Municipal de Lisboa a promover um debate sobre a Colina de Santana. Para explicar esta operação, o presidente da Estamo, Francisco Cal, disse: “A Estamo é uma empresa, de capitais públicos, mas é uma empresa especial, que é uma empresa que tem um capital social de 850 milhões de euros, portanto tem muito património, tem património que precisa de mudar os usos, para poder rentabilizar – isto é o caso destes imóveis – como também de imóveis arrendados ou desocupados” – revelando a posição estratégica da Estamo que, apesar de pública, se tem envolvido em processos de rentabilização de negócios dos privados, como é o caso da Colina de Santana.
Perante este cenário, o vereador bloquista Ricardo Robles, relembra ao i a posição do Bloco de Esquerda: “Somos favoráveis à construção do novo hospital, desde que a gestão seja pública. Havendo o novo hospital, defendemos que haja uma reestruturação das unidades de saúde na Colina de Santana. Achamos que deve haver unidades de proximidade, com cuidados continuados e paliativos, e que se possam mesmo manter outras valências. Não temos essa questão fechada. Mas achamos bem que se mantenham algumas das especialidades como, por exemplo, a cardiologia em Santa Marta. No acordo deste executivo entre BE e o PS existe explicitamente a salvaguarda do espaço público na Colina de Santana, garantindo habitação a custos acessíveis e a existência de equipamentos sociais, entre os quais os de saúde. É óbvio que há uma grande pressão do capital imobiliário para que isso não seja assim – já chamam à zona, em artigos de opinião, ‘a colina das oportunidades’. Mas há um compromisso político e ele vincula a Câmara Municipal de Lisboa”, garante o vereador do BE.
Uma posição cuidadosa tem também o deputado municipal do CDS/PP João Maria Condeixa, que relembra ao i que a perda de habitantes na capital é muito anterior ao fluxo turístico. “A Colina de Santana, por princípio, representa uma enorme oportunidade do ponto de vista da habitação, dos fogos que são necessários até para baixar o preço médio da habitação, e da recuperação de uma área central de Lisboa, mas o projeto tem de ser analisado com as devidas cautelas para que esta oportunidade não possa ser posta em causa, nomeadamente do ponto de vista das unidades de saúde e do seu aproveitamento, para não desproteger as populações que vivem no centro.” Condeixa sublinha que Lisboa perde habitantes desde 1981. “Devemos aproveitar o turismo, mas com preocupação de ter mais equilíbrio. Não podemos esquecer-nos de outras vertentes e necessidades sociais. A própria dinâmica económica exige conseguir atrair empresas e atividades de outros setores. É preciso haver vontade política para criar um equilíbrio, até para que o turismo possa continuar”, explicita o deputado municipal do PP.
IFRRU, um poderoso instrumento financeiro
Com a abertura das linhas de crédito ao IFRRU 2020 (Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas) com fontes de financiamento de fundos europeus do Portugal 2020, fundos provenientes do Banco Europeu de Investimento, empréstimos ao Estado português do Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa e fundos da banca comercial, foram disponibilizados cerca de 1400 milhões de euros para todo o país, que podem eventualmente ser reforçados, e sendo 703 milhões de fundos públicos. Santander Totta, BPI e Millennium BCP são as instituições responsáveis pela distribuição da linha de crédito. Cabe às autarquias determinarem as áreas geográficas de prioridade para esse investimento através da definição dos PARU (Plano de Ação e Regeneração Urbana). Em Lisboa, o plano abrange toda a área da Colina de Santana e alguma parte da frente Tejo do centro de Lisboa.
No relatório final do PARU Lisboa, previsto até ao ano de 2020, são traçadas as prioridades da CML: “Na Colina de Santana aponta-se para a criação de duas bolsas de habitação a custos acessíveis, na Rua de S. Lázaro e na Rua das Barracas, como programa de reabilitação urbana aberto à́parceria de operadores privados, reabilitando edificado municipal devoluto em mau estado de conservação e captando novos habitantes.
Sobre o mesmo território, pretende–se criar sinergias com atividades criativas e de inovação instaladas e em processo de instalação, na reconversão de edificado de valor histórico e cultural.
No antigo Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro (ex-Hospital do Desterro), que tem como promotor a MainSide (responsável pelo Lx Factory e Pensão Amor), prevê-se um programa diversificado e adaptado à história do edifício: a hospedagem ressurgirá através de cápsulas habitáveis; as antigas hortas são reativadas; o grande refeitório comunitário vai reaparecer; os ofícios antigos ressurgem adaptados aos dias de hoje; da filosofia de cura e bem-estar surgem projetos ligados às medicinas alternativas e naturais; o ensino e a investigação inspiram projetos em diferentes áreas da formação.
O novo Desterro tem um posicionamento estratégico enquanto peça de charneira entre a nova dinâmica de regeneração da Colina, que se pretende empreender, e o bem-sucedido processo de regeneração da Mouraria e Intendente (apoiado no quadro anterior com verbas FEDER).
No Edifício “Poste Telefónico”, concebido originalmente como enfermaria psiquiátrica do antigo Hospital Miguel Bombarda, pretende-se conjugar uma galeria de exposições com um espaço de incubação e aceleração de empresas.
Na área central da Colina prevê-se a requalificação do Campo Mártires da Pátria, eixo da Alameda de Sto. António dos Capuchos/Rua Luciano Cordeiro, Rua Gomes Freire, Largo do Mitelo e Paço da Rainha, enquanto âncoras da dinâmica de reabilitação do património histórico existente.”
O que é evidente é que a escolha do que vão ser as seis unidades hospitalares da Colina de Santana, com uma área superior à da Baixa Pombalina, vai ser estruturante para aquilo que vai ser o tecido social do bairro depois de requalificado. Não é crível que se forem transformadas em hotéis e habitação de luxo, isso não tenha um efeito de inflacionar o resto do espaço urbano, impedindo que o bairro tenha um número importante de habitações com custos acessíveis.
Na sessão da Assembleia Municipal de 10 de dezembro de 2013, em que se debatia a Colina de Santana, o vereador socialista responsável pelo urbanismo, Manuel Salgado, declarou que “felizmente que o conjunto dos antigos conventos foram adquiridos por uma entidade do Estado, a Estamo, o que dispensa tratar com diferentes proprietários e simultaneamente torna mais fácil encontrar as soluções de conjunto que mais interessam à cidade. Posta a questão nestes termos, sabemos o que não queremos. Não queremos que se repita a história do Hospital de Arroios, vendido a particular e que está ao abandono, em ruínas, com processo litigioso que se arrasta há anos”.
Para além de Manuel Salgado ter o cuidado de chamar conventos àquilo que já são hospitais há mais de um século, a questão do Hospital de Arroios é muito bem lembrada. Em 2012, o Tribunal de Contas concluiu “ser deficiente e inapropriada – ou mesmo inexistente – a fundamentação das decisões de alienação de imóveis” por parte do Estado à Estamo. E não parece que seja a Estamo a lucrar com a venda deste património: em 2004, o Hospital de Arroios, de que fala Manuel Salgado, foi vendido às empresas Mavifa e Afer por 11 milhões e revendido, passadas poucas horas, por 21 milhões – quatro dias depois de a CML ter aprovado, à Estamo, o projeto da demolição do hospital para nesse terreno poder ser edificada uma nova construção.