Num país onde parece que o sol já nem se levanta, e apenas sacode o seu manto, deixando que as cinzas se revolvam, a cultura entrou numa mansa degenerescência, espécie de estertor: um eco senil tratando mal o passado, e proporcionando ao presente algumas imprecações que, no seu melhor, dão vontade de rir. Consciente desta modorra e da imensa dificuldade de retomar um rastro que, nas últimas décadas quase se perdeu, ao querer inscrever-se na tradição da crítica de cultura, “Electra” é uma publicação que reconhece, desde logo, a necessidade de “criar o seu público”. Num texto de apresentação desta nova revista trimestral da Fundação EDP, José Manuel dos Santos e António Soares sublinham que “o tempo em que vivemos tem sido acusado de muitas coisas, mas não de pensar de mais, embora a pretexto de quase tudo soletre, com uma agilidade, uma precipitação e até uma prepotência que fazem pensar, a palavra ‘pensamento’”.
Voltando as cerca de 180 páginas do primeiro número, a par de uma impressão física de esforço e altura, como perante um lance de escadas, a revista provoca aquela “sensação de vento nas têmporas” do leitor, qualidade que Julien Gracq tomava como traço excludente de toda a pífia literatura que mais não faz do que conduzir-nos ao “encarceramento das bibliotecas”. Mais do que a carta de intenções assinada pelo director e subdirector, marcada por uma boa dose de panache, na imbricação das secções, num tão sóbrio como desafiante elenco de colaboradores, cruzando diversos campos disciplinares, a revista responde a uma época que, “surpreendida pela sua tragédia, busca diversões”, com uma certa frieza, um arregaçar de mangas. A capacidade de ler e articular diversos saberes, característica da abordagem do editor de “Electra”, o jornalista, crítico e ensaísta António Guerreiro, ganha aqui uma invejável margem para se ocupar do vazio que a imprensa generalista tem deixado, nomeadamente no que toca a perspectivar com suficiente distância e clareza esta obsessão do nosso tempo (e tanto mais esquiva quanto mais nos sentimos tropeçar nela), uma resposta para a pergunta: “o que é o contemporâneo?”
No propósito declarado de ocupar o espaço que o jornalismo desertou, a revista segue a lição do filósofo Giorgio Agamben, buscando um desfasamento e anacronismo na adesão ao seu tempo que lhe permita captá-lo melhor do que os outros. Não falta, por isso, ambição a este projecto, definido nos seus traços gerais como “uma revista de pensamento, crítica e reflexão, ecléctica nos seus temas e preocupações, atenta aos discursos das ciências humanas e sociais”.
Na sessão de apresentação à imprensa, Guerreiro frisou que, não sendo uma revista universitária, nem académica, também não é magazinesca e procurará uma actualidade que não é a dos jornais. Sujeitos aos imperativos de rentabilidade, e servindo de gatilho à crise de ansiedade “que ressoa com a horrenda sinfonia dos actos que produzem notícias de jornal e das notícias de jornal responsáveis por actos” (Karl Kraus), o demolidor diagnóstico foi servido a uma sala cheia de jornalistas de cultura, que o recebeu impávida e serena. Até o ar na sala encolhia os ombros. Guerreiro referiu ainda a preponderância da opinião, e notou que, mesmo o desejo inicial de contar com algumas crónicas, caiu do horizonte da revista por ser essa a tónica dominante dos discursos nesta época ruidosa. José Manuel dos Santos tinha-se já referido à voragem mediática e informativa na qual se tornou impossível distinguir ou hierarquizar aquilo que é veiculado, e referiu a discrepância essencial assinalada por Harold Bloom ao dizer que a crítica se distingue da opinião pelo modo como, ao fundamentar-se, se transforma em conhecimento.
As questões levantadas pelos jornalistas presentes na sala mais não fizeram do que confirmar o diagnóstico. E se houve a preocupação em saber qual vai ser a tiragem da revista, a periodicidade, se a capa do primeiro número se irá manter inalterada… já não houve margem para a menor provocação. Vai longe o tempo dos jornalistas façanhudos, os desmancha-prazeres: o tipo comido pela caspa, e que, àquela hora (depois do almoço), tivesse já o espírito pelos joelhos numa poça de álcool, capaz de perguntar ao fato que falou em nome da administração da EDP como é que a mais lucrativa empresa portuguesa combina o ter pago em 2017 apenas 0,7 dos seus lucros de 1,52 mil milhões de euros (apenas 10,3 milhões, portanto) com a bondosa Fundação que, enquanto mecenas cultural, e até nos projectos de inclusão social, abre mão de migalhas se comparado com a isenção de que goza a empresa-mãe, num nível de tributação inferior ao da maioria das famílias portuguesas. Sob o risco de se confundir com a hipocrisia da moral dominante, não estaria a revista obrigada a um esforço de auto-crítica?
O tema deste primeiro número é uma citação do incendiário satirista vienense do princípio do século XX, Karl Kraus. E o título do dossier coincide com o da edição de sátiras escolhidas que António Sousa Ribeiro seleccionou e traduziu e que acaba de ser publicado pela Relógio D’Água: “Nesta Grande Época”. Como Guerreiro explicitou, a “grande época” de que o dossier trata é a nossa, e a ideia é desdobrar o presente e pensá-lo em termos políticos, sociais, ecológicos, etc. “Com a pena humedecida nas trevas do presente”, o filósofo italiano Roberto Esposito escreve sobre biopolítica e pós-democracia, o filósofo francês Frédéric Neyrat sobre questões de ecologia política, Marx e o Antropoceno, Pê Feijó sobre as questões do género, e é entrevistado o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Guerreirro assina o artigo de apresentação deste dossier, situando o leitor na diversidade das questões que levanta uma época que se caracteriza justamente por uma permanente convulsão, de tal modo volúvel que, de acordo com Bernard Stiegler, vivemos numa época da ausência de época. O editor ressalva que, se o tom apocalíptico de Kraus foi amplamente cultivado há um século, e se tornou “um género ensaístico que forneceu abundante literatura”, “os apocalipses do tempo de Kraus têm hoje uma feição muito menos ‘espiritual’ e designam no nosso tempo algo que não passa pelas filosofias da história e por categorias teológicas porque se referem, brutalmente, à ideia de extinção e autodestruição da humanidade”.
O texto termina, de resto, lembrando que o conceito de Stiegler se baseou no depoimento de um jovem francês de 15 anos para um livro colectivo: “Vocês não têm a noção do que nos acontece. Quando falo com jovens da minha geração, que têm dois ou três anos mais ou menos do que eu, dizem todos a mesma coisa: Já não temos aquele sonho de criar uma família, de ter filhos, um emprego e ideais como vocês tinham quando eram adolescentes. Tudo isso acabou, estou convencido de que somos a última, ou uma das últimas, gerações antes do fim.”
Com João Oliveira Duarte, Guerreiro fecha o dossier com um glossário de termos preponderantes para pensar esta época. O lançamento da revista é este sábado, às 17 horas, e contará com uma conferência do filósofo Boris Groys na Fundação EDP – Central Tejo. Uma das rubricas deste primeiro número da revista é precisamente uma entrevista conduzida por Guerreiro a este autor fundamental da teoria dos media e nas questões da arte contemporânea (os museus, os centros de arte, a relação entre arte e política, etc.).
Além disso, em cada número haverá um portfólio de artista, e neste o convidado é Lourdes Castro, com um trabalho inédito a partir de um poema de Rainer Maria Rilke. Outras secções são dedicadas ao espaço urbano, às cidades (há um artigo do filósofo italiano Andrea Cavalletti sobre Bolonha; um sobre problemas e tendências urbanos, de Álvaro Domingues, que se debruça sobre o centro histórico das cidades), outra sobre factos, pessoas ou acontecimentos que, pela sua importância, mereçam ser evocados (neste número, o artigo é de Yves Michaud sobre os 40 anos do Centro Georges Pompidou), e há uma secção com “perfis” de pessoas das artes, das letras ou da ciência – no qual João Oliveira Duarte traçou neste número o perfil intelectual do poeta António Franco Alexandre… Há mais e o que não nos resta aqui é espaço, mas o grande desafio será esperar para ver se uma revista com esta ambição pode registar-se acima da desgraçada tagarelice desta época, ou se, tal como Kraus, só lhe resta falar para os que já se calaram, os que já não esperam que nada se modifique, e entendem que só lhes resta preservar o seu silêncio de ser mal interpretado.