Um ano depois do surto que fez disparar os alarmes em Portugal sobre o perigo do regresso do sarampo, que na altura causou a morte de uma adolescente de 17 anos que contraíra a doença no Hospital de Cascais, o cenário repete-se. E tudo indica que o surto em curso na região Norte atingirá proporções bem maiores do que os 20 casos registados no ano passado em Lisboa, a que se somaram outros sete casos de sarampo de um surto menor no Algarve e dois doentes declarados casos isolados.
A discussão sobre se os profissionais de saúde, desta vez os mais afetados, deverão ser obrigados a ter as vacinas em dia entrou na agenda. Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, sublinha que, antes de mais, é preciso continuar a sensibilizar para a vacinação, a única forma de travar a progressão da doença na comunidade e prevenir manifestações mais graves.
Nos últimos meses, depois do surto de 2017, a DGS reforçou o apelo à vacinação e lançou uma campanha para ‘repescar’ adultos por vacinar, sendo o público alvo jovens adultos que nasceram depois de 1970 e apanharam uma «fase de transição», explica Graça Freitas. Isto porque a vacina do sarampo foi incluída no Programa Nacional de Vacinação em 1974 mas a adesão não foi logo elevada. E se os mais velhos estiveram expostos à doença na infância, e por isso guardam alguma imunidade, os mais jovens dependem da imunização para combater melhor o vírus que tem vindo a disseminar-se na Europa à conta dos movimentos ‘antivacinas’.
A boa notícia, diz ao SOL Graça Freitas, é que no último ano foi possível vacinar 40 mil adultos que não tinham a vacina. «Estes surtos que infelizmente acontecem são uma oportunidade para as pessoas reverem os seus boletins», defende a responsável, que não se quer pronunciar sobre uma imposição de vacinas aos profissionais de saúde por defender que a estratégia passa pelos serviços de saúde ocupacional e as comissões de prevenção de infeções das unidades fazerem uma abordagem preventiva, como está definido.
Quantos profissionais sem vacina? «É-se vacinado em criança»
Não se sabe ao certo quantos adultos não têm vacina – essa contabilidade deverá tornar-se mais fácil nos próximos meses quando terminar o processo de digitalização dos boletins de vacina, os livrinhos amarelos que registam todas as imunizações e que em 2017 começaram a ser transpostos para uma base de dados nacional. Mas Graça Freitas acredita que não há motivo para acreditar que o universo dos profissionais de saúde seja diferente do da população em geral: «As pessoas são vacinadas em crianças e uma pessoa com um ano não sabia se ia ser médica, engenheira ou segurança. Se a cobertura nacional tem rondado os 95%, será essa a cobertura dos profissionais de saúde. Na zona norte até é maior, na casa dos 97% a 98%, por isso nos profissionais será idêntico».
Os últimos dados sugerem que, em 2015-2016, baixou ligeiramente o número de indivíduos com algum tipo de imunidade ao sarampo, para 94,2%, o que Graça Freitas diz, porém, não poder ser considerado o «fim da imunidade de grupo», como chegou a circular. «Eu trabalhei nos grandes surtos de sarampo antes de haver imunidade de grupo e aí tínhamos centenas de casos num surto que atingia todos os grupos etários. Isto é como um incêndio, se à volta não houver mato para pegar, fica confinado. Se não, torna-se endémico», diz Graça Freitas.
Ainda assim, e essa poderá ser uma notícia menos boa, os dados mais recentes já para 2017, adianta ao SOL a responsável, mostram que no ano passado 5% das crianças falharam a primeira dose da vacina aos 12 meses de idade, o que aponta para que continue a avolumar-se o grupo de pessoas sem vacina a um ritmo de 4500 pessoas/ano. Freitas sublinha que não é certo que todas tenham ficado sem vacina, porque há pais que levam os filhos ao centro de saúde aos 13, 14 ou 15 meses. Mas a responsável sublinha que importa cumprir o calendário, pois são as idades recomendadas e contribuem para a proteção de grupo. No surto em curso no Porto, tudo terá começado com um homem de 27 anos que contraiu a doença em França e veio incubar o vírus para Portugal, acabando por contagiar um familiar e profissionais de saúde. Mas, no ano passado, um dos primeiros casos foi um bebé que ainda não tinha feito a vacina.
Ontem a bastonária dos Enfermeiros rejeitou que o problema esteja nos profissionais por vacinar, apontando antes para a falta de pessoal nos centros de saúde e para os horários limitados dos gabinetes de vacinação. Graça Freitas rejeita que seja o «maior ou menor número» de recursos a causar constrangimentos nesta área. «Quando começámos o programa nacional de vacinação não havia SNS e vacinaram-se três milhões de pessoas contra a poliomielite. O que havia de diferente era que as pessoas tinham medo destas doenças e importa que hoje as pessoas tornem a ver a vacinação como uma prioridade. Infelizmente, há uma série de doenças que não podemos evitar, mas outras podemos. Mas hoje as pessoas já não imaginam o que era passar a infância a ter estas doenças todas, o sarampo, a papeira, a tosse convulsa. A vacinação é um direito, um dever e um ato de solidariedade», diz Graça Freitas.
De França para Portugal
Como se explica então um surto num hospital pelo segundo ano consecutivo? Graça Freitas sublinha que este é o «padrão de surto num país desenvolvido e com elevada cobertura vacinal», já que nas escolas a maioria das crianças estão vacinadas e nos hospitais, onde há a hipótese de entrarem doentes ligados a países com surtos ativos, está a geração na tal transição, entre 20 a 40 anos, que podem não ter sido vacinados e a quem está recomendada a vacina, mas para quem isso pode não estar tão presente – em 2016 o sarampo era uma doença oficialmente erradicada no país. O facto de uma pessoa com o vírus ser contagiosa dois a quatro dias antes das erupções na pele torna o despiste menos linear.
No surto no Porto, o caso inicial foi um jovem francês de 27 anos que reside em Portugal e regressara recentemente de França. Contagiou um familiar e, ao deslocar-se ao Hospital de Santo António, contagiou quem o atendeu. «Como os profissionais fazem turnos e várias horas juntos e trabalham alguns noutros hospitais, essa poderá ser uma explicação para o desenvolvimento do surto», diz Graça Freitas.
A ligação a França prende-se com a epidemia que está a verificar-se desde novembro, em particular na região de Nouvelle Aquitaine, com mais de 900 casos. Desde que o surto foi sinalizado no Porto, estão a ser contactados familiares, amigos e colegas de todos os doentes. «Sabemos, em relação a cada doente, todas as pessoas com quem esteve», garante Graça Freitas, que fala de «dezenas e dezenas de contactos» e sublinha que há interrogatórios a decorrer diariamente, numa investigação epidemiológica «difícil» e que só deverá ficar concluída nos próximos meses.