Nunca desde o começo da guerra ucraniana o estado das relações entre o Governo russo e os países ocidentais se encontrou tão instável, inflamado e ameaçador. E nunca desde a Guerra Fria caíram tão perto os golpes russos que provocam a crise. Esta semana, unindo-se numa frente diplomática que, nos últimos anos, se vem mostrando tudo menos coesa, os Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha acusaram o Kremlin de ter executado o primeiro ataque com um agente nervoso em solo europeu desde a II Guerra Mundial, culpando definitivamente Moscovo pelo envenenamento e tentativa de homicídio de Sergei Skripal e da sua filha, Yulia, encontrados catatónicos, no início do mês, num banco de centro comercial no sul da Inglaterra. Pela primeira vez desde que os britânicos decidiram abandonar a União Europeia e Donald Trump venceu as eleições nos EUA, os grandes aliados da NATO uniram-se para atirar contra Vladimir Putin e a sua estratégia de guerra cinzenta, que opera nos limiares do aceitável e do comprovável, muito difícil de punir e, até ao momento, bastante eficaz.
As novas frentes de tensão com a Rússia de Vladimir Putin não se esgotaram esta semana no caso do espião duplo aparentemente atacado com o mais letal e avançado agente nervoso de que há registo no mundo, o Novichok. No mesmo dia em que os aliados da NATO formaram a sua frente comum, e um dia depois de o Reino Unido anunciar um conjunto relativamente severo de sanções contra Moscovo, os Estados Unidos anunciaram que a recém-ressuscitada mão do aparelho de espionagem russo atacou recentemente o Ocidente para além do homicídio de antigos espiões e manobras de confusão eleitoral. O Departamento de Segurança dos Estados Unidos divulgou uma investigação na qual descreve a amplitude dos ataques informáticos dos serviços secretos russos nos últimos três anos, defendendo a tese de que o Kremlin de Putin espalhou e aprofundou os seus tentáculos muito para além do conhecido. Segundo Washington, a Rússia contaminou dezenas de sistemas informáticos considerados vitais nos Estados Unidos e na Europa, e até muito recentemente estava em condições de desligar fábricas, centrais energéticas – incluindo as nucleares -, serviços de governo e outras estruturas que, no caso de um conflito, poderiam provocar o colapso de uma região ou país. «Pelo que conseguimos ver, eles estavam lá. Tinham a habilidade de desligar a tomada. Tudo o que faltava era alguma motivação política», explica ao New York Times Eric Chien, um dos diretores da Symatec, a empresa contratada pelo Governo americano para fazer parte da segurança informática das estruturas nacionais.
Os britânicos responderam ao agente nervoso que envenenou os Skripal e os norte-americanos retaliaram contra os braços informáticos que podiam ter paralisado as estruturas do mundo ocidental. Washington anunciou um rol de sanções económicas contra 19 cidadãos russos, três dos quais governam importantes agências do Governo. Londres, por sua vez, pôs em marcha um castigo muito mais forte do que aquele que acionou quando um outro ex-espião em território britânico, Alexander Litvinenko, foi envenenado com um isótopo radioativo deitado no seu chá. Em 2006, o Governo britânico expulsou discretamente alguns agentes e diplomatas russos. Desta vez, o remédio é outro: o Reino Unido expulsará 23 dos 58 diplomatas no país, muitos deles agentes sob disfarces pouco densos; vai rever as leis que permitem à elite russa lavar dinheiro e fazer grandes investimentos imobiliários com pouco controlo; tentará amputar a oligarquia que opera livremente em solo britânico, não enviará representação política ao Mundial de Futebol na Rússia e tentará mobilizar os poderes europeus com os quais vem andando em rota de colisão para avaliar medidas internacionais contra Moscovo, que já respondeu dizendo que expulsará também diplomatas britânicos da Rússia. Trata-se de um conjunto invulgar de castigos que permite à primeira-ministra Theresa May arreganhar por um momento os dentes e escapar, pelo menos parcialmente, à sensação de fragilidade que a acompanha desde as últimas eleições. No entanto, é pouco provável que as punições norte-americanas ou os castigos britânicos causem estragos importantes no Governo russo e levem Putin a reconsiderar o rumo da interferência e expansão. «Nenhuma destas medidas por si mesma terá impacto no desempenho económico russo», explica ao Guardian Malcolm Chalmers, um dos diretores do think-tank Rusi. «O Kremlin compreende que se trata de uma resposta muito amena».
Eleições e celebração
Do lado russo parecem estar em jogo três operações distintas. A primeira é encarada como uma manobra militar mais ou menos convencional, embora alarmante: ao comprometer os sistemas de energia e administração dos países com os quais se pode ver em guerra, Moscovo não faz menos que os Estados Unidos recentemente fizeram contra as estruturas iranianas e os programas nuclear e balístico da Coreia do Norte. O alcance das ferramentas informáticas russas pode ser surpreendente, mas que as tenham colocado em jogo, não. A segunda operação, por estes dias a mais célebre, desdobra-se em manobras de destabilização das democracias ocidentais, pode ter influenciado determinantemente as eleições norte-americanas, e, segundo Madrid, Paris e Berlim, por exemplo, tentou pôr o dedo na corrida ao Eliseu, nas eleições para o Bundestag e na disputa independentista catalã. O Kremlin nega as acusações, ontem considerou «inaceitável» que se aponte o dedo ao seu Presidente, mas deixa o suficiente nas entrelinhas para que se saiba, em casa e lá fora, que os anos de um Governo russo moribundo e em recobro da queda da União Soviética já passaram. Vladimir Putin demonstrará isso mesmo nas eleições de amanhã, que ninguém, nem mesmo os mais efabuladores, consideram que pode perder.
Há todavia um terceiro ramo que até ao momento parece ter sido desvalorizado. O ataque contra os Skripal, que, de acordo com o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, foi quase certamente comandado pelo próprio Putin, parece ser um aviso a antigos exilados e ex-espiões russos que pensam estar a salvo no estrangeiro depois de venderem informações confidenciais aos rivais de Moscovo, como fez, por 100 mil dólares, o próprio Skripal, revelando os nomes de espiões na clandestinidade. A televisão russo assim o disse no início do mês: «Queres sejas um traidor profissional à mãe pátria ou só odeies o teu país nos tempos livres, repito, não importa, não vás para a Inglaterra», afirmou o apresentador Kirill Kleymenov no mais importante canal russo. Mas a notícia de que o Governo russo usou o agente nervoso Novichok para atacar Skripal demonstra a seriedade do programa de assassinatos russo. Esta é a mais potente arma química conhecida no mundo, desenvolvida pela União Soviética nos anos 70 e 80, quase impercetível, incurável e, em larga medida, intratável. Um dos cientistas que a manobrava na Guerra Fria contaminou-se por acidente, injetou o antídoto com rapidez mas morreu passados cinco anos agoniantes, passados entre depressões e graves ataques epiléticos. Até ao momento, desconheciam-se outros ataques com Novichok no mundo. Este pode ter sido o primeiro, mas os investigadores britânicos pensam agora que outros exilados podem ter sido envenenados da mesma forma e erradamente diagnosticados com mortes naturais. Mais de dez dossiês serão reavaliados em breve.